Aproveitando a época festiva que aí vem, e não me querendo excluir do desporto nacional que é a pedinchice, aqui te envio um muito humilde desejo para me encher o sapatinho. Se por acaso te parecer que peço demais, tem em consideração que celebro o aniversário pouco antes do teu. Podes juntar tudo na mesma conta — não seria a primeira vez.
Adoraria, por obséquio, que me devolvesses a bem-aventurada ignorância em que me enganava até há umas semanas. Nessa saudosa época, agora aparentemente distante, eu acreditava fazer parte de um caldo cultural cuja pestilenta ferida do anti-semitismo, dolorosamente cauterizada pela Segunda Grande Guerra, estaria já enterrada em camadas e camadas de tecido cicatrizado. Um prurido aqui, outro ali, mas negligenciável, talvez até risível. Agora descubro, caro Amigo, que afinal a gangrena proliferava por abaixo da superfície, qual ódio disfarçado a esgares e salamaleques, até se libertar, tão pustulenta quanto dissimulada. O tal anti-semitismo acredita que se se baptizar de anti-sionismo ninguém o ouve gritar “do rio até ao mar”; que se verter profusas lágrimas de crocodilo ninguém lhe lê os cartazes de “morte aos Judeus”. Não é o cidadão israelita, o problema. O israelita Árabe pode ficar; quem tem de ir é o Judeu.
O disfarce do anti-sionismo ignora, muitas vezes, que o movimento sionista começou ainda no século XIX, com a compra de terrenos no meio do deserto, sob o escárnio de quem lhos vendia por ficarem com o dinheiro do Judeu em troca de umas dunas de areia sem valor. Ignora, por mais que berre que aquilo é Palestina desde sempre, e por isso pertença divina dos palestinianos, que o território foi rebaptizado pelos romanos, porque os locais (principalmente uns tais de Judeus) se recusavam a aceitar a sua governação daquilo que era, antes disso, a Judeia.
Assim te rogo, a Ti que nasceste Judeu, que me apagues a percepção desse anti-semitismo que, ambidextro, alimentou várias ideologias do século passado e que hoje pespega estrelas amarelas com a inscrição “Jude” em certas portas de Berlim, esfaqueia senhoras de idade em França e pinta grafitis ofensivos nas sinagogas portuguesas. Peço-te, vigorosamente, como virás a pedir ao Teu Pai numa certa Páscoa, que me poupes à dor que é descobrir que pessoas de bem não vêem problema nenhum em manifestar-se ao lado de quem diz e repete que o vil, inumano e odioso 7 de Novembro é para repetir, vezes e vezes e vezes sem conta, ou, no mínimo, acha que a guerra e a morte que esta traz acabaria se ao menos o Judeu se cingisse à sua condição prévia de vítima indefesa, deferente e apátrida.
Eu sei que este pedido enche mais que um sapatinho, e talvez o saldo adicional do aniversário não seja suficiente, mas ainda tenho lata para te pedir que, enquanto profeta também do Islão, além de olhar pelos inocentes aquele lado, lhes dês uma palavrinha sobre tolerância. Não é fácil, até porque a vida não lhes é fácil e do outro lado também não gostam muito deles (vá-se lá saber porquê!).
Quanto a mim, em troca, prometo-te que vou tentar compreender melhor esta abjecta doença que assola o mundo, o anti-semitismo, prevenindo a recusa deste modesto pedido que te faço, mas recuso-me a aplicar qualquer tipo de tolerância pessoal a quem finque os pés na sua intolerância ao Judeu, por mais bem-intencionadamente cega.
Cordiais cumprimentos deste teu desalentado amigo, com um “Feliz Aniversário” antecipado,
Gonçalo