Bastou meia dúzia de ameaças e o projecto que ia revolucionar o futebol na Europa, ruiu como castelo feito de cartas. Primeiro, com timidez. Depois, com estrondo. Só que a ideia-capricho de 12 clubes teve a arte de mostrar a motivação e a dimensão do problema. E com a pandemia a servir de escudo, foi encontrado o compasso para a dança liderada pelo presidente do clube que, sozinho, tem 20% das Taças/Ligas dos Campeões (13 em 65), o Real Madrid. A nova ex-sociedade europeia, por sinal exclusiva, conseguiu juntar velhos senhores da aristocracia, clubes populares, cristãos-novos, novos-ricos e alguns arrivistas com dinheiro de origem duvidosa. Havia, portanto, de tudo: só não havia pilantras, patas-rapadas ou veleidade de resistir ao contra-ataque. Por isso, durou pouco.
É claro que perante o desassombro, os ainda "donos da bola", e não só, avançaram com ameaças directas aos clubes e ameaças indirectas aos jogadores. UEFA, FIFA, federações, adeptos, treinadores, presidentes e políticos condenaram em uníssono o projecto da Superliga, sem deixar escapar o manifesto egoísmo, a profunda ganância, e os injustificados privilégios. Pelo meio, não esqueceram o campeonato fechado do qual alguns eram inamovíveis. Se o cenário não era de apocalipse, aproximava-se de um armagedão.
O drama instalou-se, mas as ameaças resultaram. Os clubes abandonaram a aventura mais rápido que soldados a fugir de uma emboscada. De secessionistas, os clubes passaram a arrependidos de ocasião e as desculpas sucederam-se. Mas a verdade é que desde a exclusão das provas, às multas, às perdas na secretaria, sem esquecer a proibição dos jogadores participarem nas selecções, que tudo serviu e foi usado para enterrar a Superliga. O fim justificou os meios. Mas o barro atirado à parede pode não ter colado, mas deixou marcas na estrutura.
O arrojo provou, antes de mais, que o que era um mero delírio no papel, é afinal uma possibilidade bem real, igual a um livro de ficção científica que antecipa o futuro. E se, quanto a mim, nem os organizadores, que perdem o dinheiro, nem os grandes clubes, que se iam embrulhar numa batalha legal de consequências imprevisíveis, desejam a ruptura para já, a verdade é que há que mudar alguma coisa para deixar tudo na mesma. E isto num momento em que por coincidência se anunciava a reformulação da Liga dos Campeões com mais receitas, mais competitividade e mais participantes, a lengalenga do costume. O problema é que entre o que se quer e o que acontece, há uma enorme distância: a Liga dos Campeões, na verdade, distribui cada vez mais dinheiro pelos mais ricos e cava fossos cada vez maiores para os mais pobres. A competição também é fechada e de acesso restrito. O resto é romantismo para enganar saloios.
É claro que a aventura dos 12 não vai ter punição. Ninguém se atreve a tocar na velha aristocracia ou na nova burguesia, mesmo que se tenham comportado como ratos que à mínima dificuldade debandaram. Fazem lembrar outros ratos, estes de natureza política, que aqui na Região, em 2019, já tinham largado o navio, passado para o navio adversário e que, num volte-face, ainda acabaram confortados com prebendas várias no navio original. O mesmo vai acontecer com os clubes prevaricadores. Passam-lhes a mão no pelo, dão-lhes mais dinheiro e fica tudo bem. Amanhã, ninguém se lembra.
Quanto à indignação nacional, ela foi bonita. Mas sem qualquer tipo de vergonha. Os que barafustaram contra a audácia dos "grandes da Europa", são os que acolhem firmes a vergonha dos "grandes de Portugal", os tais que ficam com a receita quase toda da televisão, deixando migalhas para os restantes. Mas aqui as consciências não se intrometem no normal funcionamento das instituições, não exigem perdas de pontos, suspensões dos campeonatos ou vetos de jogadores na selecção. Aí continuamos iguais a Prometeu: abençoados com a luz. Mas apenas para continuarmos amaldiçoados com a esperança.