É mais ou menos por aqui que, na nossa imagética cristã, mora a génese do Natal. Todavia, esquecemo-la facilmente. Com árvores sobejamente decoradas, iluminações que encadeiam outros fins, um velhinho de barbas brancas trajado de vermelho e sacos de compras a abarrotar de nada, proferimos quase ritual e acefalamente "Feliz Natal"! Descuramos as portas que não se abriram! A gruta que restou e a manjedoura que se improvisou berçário, com um burro e uma vaca a climatizar um ambiente exterior de egoísmos e humanamente inóspito.
O Natal não foi cor-de-rosa. Será rosa o Natal? Para que o Natal seja rosa para alguns, muitas portas continuam por se abrir e múltiplas grutas continuam a ser refúgio de vida em manjedouras que se improvisam. Para um conjunto significativo de pessoas passar o Natal é vencer diariamente o cansaço da luta pela sobrevivência. Sim, sobrevivência! Sobrevivência de gente que se honra e honra a condição de ser humano. Gente que com ordenados mínimos, ou um pouco mais que isso, se reinventa milagrosamente numa existência digna e heroína, que me serve de referência e exemplo. Mulheres e homens que são, cada vez mais, os meus heróis! Heróis que não se vergam ao peso das horas passadas de pé, em semanas intermináveis no limite da vida à beira da margem da existência. Gente que conta e faz contas ao final de um mês que não chega e a mais uma conta que falta pagar. Gente anónima que, todos os dias, faz esta terra mexer… mexendo-se para que alguns possam ter o conforto dos caprichos e do descanso ao longo de tantos dias do ano. Gente que abomina o subsídio e hoje está a trabalhar! Gente que trabalhará para lá do limite do Natal, para que haja jantares e prendas, que se amontoam a tantos outros jantares e prendas que não nos recordamos. Gente que não janta fora e quando sai à noite é para ir para casa ao encontro dos filhos que amam! Gente que abre e fecha lojas e centros comerciais, que limpa e arruma, que leva e traz, que lava e volta a lavar. Gente que recolhe o lixo de luxos de outras vidas que não as suas, que recebe e encaminha, que vive por turnos mas sempre com um sorriso no rosto, disfarçando a ausência e a distância aos seus, a si e ao Natal. Como os admiro! São estes e muitos como estes que tenho no meu presépio. São os meus heróis do Natal. É neles que me encontro e reflito, num ato de contrição que me envergonha e me recorda que este não é um tempo cor-de-rosa para todos. Heróis anónimos do dia-a-dia que, provavelmente, terão como destino aquela "metade de novos reformados que não ganha mais de €430"…
Sim, o Natal não é rosa! Mas esta gente, que sente a inflação sem pensar na inflação, faz com que Natal pareça rosa. Esta gente opera o milagre do nascimento, é a luz discreta que nos faz acreditar que o Natal é cor-de-rosa! Sou grato a cada uma e a cada um de vós. E se o Natal não vos for feliz, que sejam felizes neste Natal! Obrigado!