Estou quase a fazer 57 anos e entretenho-me a pensar nisso, por exemplo, no facto de me chamar Duarte Martinho porque nasci a 11 de novembro, no dia de São Martinho. A minha mãe, que não era uma mulher supersticiosa nem de ir muito à missa, achou por bem mesmo assim homenagear o santo e atribuiu-me o seu nome. Agora ele vai comigo para todo o lado, no cartão de cidadão, na carta de condução, no passaporte. Quero dizer, um tipo que viveu e morreu no século IV conseguiu encarnar na minha identidade e anda a deambular por aí desde 1967, aparentemente em bom estado de saúde, vá lá.
Devo confessar que não gosto muito do nome Martinho, mas sempre achei graça à lenda do santo, porque a minha mãe ma contava como história de embalar, aquela cena quando ele era soldado do exército romano e ia sozinho a cavalo num dia de chuva e frio e encontrou um pedinte pelo caminho. Então, o gajo sacou a espada e cortou a capa ao meio e ofereceu-lhe uma parte. Depois seguiu viagem e mais à frente encontrou outro pedinte a quem deu a outra metade da capa, de modo que ficou exposto à tempestade. Mas eis que de repente acontece um milagre: a chuva estanca, o céu fica limpo e o sol brilha cheio de esplendor.
É uma explicação fantástica para o verão de São Martinho, não vos parece?! Eu cá acho que é maravilhosa, mais não seja porque sou ateu e, como tal, preciso de muita fantasia para viver e sobreviver, mais ainda agora que o tempo se precipita e eu estou quase a fazer 57 anos, não sabendo quantos mais me sobram, nem se chego intacto ao dia do meu querido santo. Meu Deus, o que seria de mim sem as extravagâncias da imaginação, sem as utopias, sem as ficções?!
É por isso que também me distraio a pensar no signo sob o qual nasci, o obscuro e misterioso Escorpião. Uma maravilha de signo, sem dúvida. Dizem ser o signo do sexo e da morte, do começo e do fim. Raios me partam!
É um signo do elemento Água e faz de mim, segundo a opinião dos astrólogos e toda a literatura sobre o assunto, um tipo determinado, desconfiado e autodestrutivo. Mas, por outro lado, também sou exímio na captação das emoções das pessoas e sou capaz de as avaliar em profundidade como mais ninguém, indo até ao fundo dos seus abismos interiores. Depois, para me proteger das descobertas que faço na alma dos outros, torno-me às vezes cínico. Pois é. Não tenho culpa. São as estrelas da constelação que me fazem ser assim, cheio de força interior, sensível, apaixonado, profundo, enigmático, intuitivo, sombrio.
É como digo: o que seria de mim, que sou ateu e em nada acredito, sem as singularidades da imaginação, sem as fantasmagorias, sem as quimeras?!
E agora, posto isto, dizer o quê, meus amigos? Dizer o quê? Parece-me que já tudo foi dito e, para agravar a situação, há muito que não acontece nada em mim e ao meu redor, nada que valha a pena contar. Ou melhor: há muito que não reparo em nada de novo, nada com luz própria, raro, invulgar, embora saiba perfeitamente que todo o mundo é composto de mudança e a toda a hora muda-se o ser e a confiança. Afinal – é preciso notar – eu também sou poeta. Como o Camões, é claro, só que em versão meia-tigela.
(Suspiro)
Mas isto são coisas da idade e, de facto, a idade não perdoa. Leva-nos a juventude e a beleza – até mesmo quando não temos beleza ficámos sem ela, vejam bem, porque perdemos o esplendor – e depois o que nos sobra, na melhor das hipóteses, é alguma sabedoria e a sabedoria, meus caros, por mais residual que seja, sempre nos vai protegendo da estupidez e da maldade – alheia e própria – e também nos ajuda a aceitar com delicadeza que entre nós só a morte é perfeita e eterna.
Pois é...