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Artigo de Opinião

CONTOS INSULARADOS

18/08/2024 07:35

A cómoda tinha três gavetas e a primeira ficava reservada para os avulsos. Papéis de importância menor, umas cartas trocadas com um familiar, que se guardava por mais tempo para confortar a saudade, o que não tinha cabimento em mais lugar nenhum e que, no sábado das voltas e das arrumações, tinha de sair de cima do naperon de crochet, para deixar os bibelots no pedestal que devia ser só deles, lado a lado com a caixinha de música e jóias, e, o melhor de tudo, as moedas menores, que eram atiradas ao esquecimento, na resignação de que sozinhas eram inúteis.

Nunca saiu de lá fortuna que se visse daquela primeira gaveta, que ficava imediatamente acima da destinada às coisas de família, que deixava a mãe de lágrimas nos olhos, de cada vez que abria para lavar e arejar, naquelas limpezas de primavera, onde saiam para o estendal, antes de repousarem entre saquinhos de cheiro num novo ano da vida da família, que começava ali e não em janeiro. Era o fatinho de batizado da mais nova, o lacinho de cabelo da primeira comunhão da mais velha e aqueles bordados, que já vinham de não sei quantas gerações e que adornavam as mesas dos dias de festa.

A terceira gaveta tinha outras preciosidades, o que era novo a estrear e que aguardava até conhecer o destino das coisas usadas. Às vezes meses a fio, que as ocasiões especiais eram levadas a sério, e constituíam uma lição de resiliência e paciência, de elevada incompreensão nos nossos verdes anos.

Era a gaveta mais triste e mais desalinhada, onde se procurava tudo e nunca se encontrava nada, mas era uma espécie de caixa do tesouro da nossa infância. Sem mapa e sem orientação.

O pai exasperava quando precisava de trocos e nunca os havia. “Esta gaveta não tem fundo”, dizia à procura de 80 escudos para dar ao homem do peixe. “Farto-me de atirar moedas para lá”, resmungava. Trocávamos olhares cúmplices, a mãe dizia que devia ter sido usado para comprar pão de certeza. Talvez fosse o segredo mais mal guardado da casa, uma espécie de fingimento colectivo.

Quando ouvíamos o som das moedas no fundo da gaveta, fazíamos as contas na nossa cabeça. Essa semana comeríamos gelados. E tínhamos de o fazer com inteligência, sem nunca cair no erro de ir acima das nossas possibilidades, afinal a gaveta não podia ficar totalmente vazia ou o segredo seria descoberto. Era rota, mas tinha fundo. Em rigor, a gaveta do tesouro daquela cómoda foi a nossa primeira lição de economia e um rotundo falhanço nas técnicas de poupança dos nossos progenitores. E é impossível olhar para ela e não sentir o sabor do ‘nevada’, o nosso gelado da Ilma de eleição, escorrer pela nossa memória.

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