Ele podia ter ficado para sempre no país para onde emigrou, ou melhor, para onde fugiu para não ir à guerra, do lado de lá do Atlântico, até porque estava a singrar muito bem e em breve seria um homem rico, muito rico, mas o feitiço daquela mulher era mais forte do que a magia do ouro e chamava-o todos os dias, todos os dias ele ouvia o chamamento da sua terra, todos os dias ele sonhava com aquela mulher e, no entanto, ela nunca o quis, nunca, nunca e mesmo assim ele voltou.
O seu nome constava da lista de refratários e desertores e esses, quando identificados, eram sempre detidos e foi isso que lhe aconteceu mal desembarcou na ilha. Confiscaram-lhe a bagagem, uma trouxa sem valor, e remeteram-no para a cadeia velha, perto do porto. Coube-lhe uma cela na cave, exígua, húmida e sem ventilação, onde ficou durante um ano, quase sem ver a luz do sol e sem dirigir palavra a ninguém para além do pouco que dizia aos guardas.
A certa altura, a loucura começou a assediá-lo, primeiro em sonhos, depois no decurso das insónias, até que lhe tomou o corpo por inteiro, enchendo-o de tremores inexplicáveis, súbitos, recorrentes, de modo que para evitar danos maiores ele gritava e às vezes gritava horas a fio, gritava tanto até ficar vazio e depois tornava a encher o espírito com a imagem da mulher que amava, aquela que nunca o quis, e sentia-se feliz e forte por isso e sobrevivia.
Um dia, sem qualquer explicação, libertaram-no e ele viu-se de repente em plena cidade e havia gente por todo o lado, multidões informes que deambulavam para cá e para lá, juntavam-se nas praças em grandes manifestações promovidas por partidos e por sindicatos e em certas ruas ouvia-se tiros, alguém caía no chão, outros fugiam e pequenos grupos de labregos aproveitavam a confusão para assaltar lojas e armazéns, de modo que os dias eram difíceis e perigosos na capital e então ele seguiu viagem para a sua terra, primeiro a pé, porque não tinha dinheiro para pagar transporte, depois de camioneta, porque pelo caminho assaltou uma casa e arranjou verba para o bilhete.
Quando saiu do autocarro já era noite, mas mesmo assim meteu-se pela vereda, um trilho de cabras rasgado na escapa da montanha, e chegou ao sítio ao raiar do dia, exausto e a morrer de fome. Foi direitinho bater à porta de casa e acordou a mãe e os dois irmãos mais novos, agora feitos homenzinhos, rijos e espantados como espantalhos num poio.
Tomados de surpresa, encheram-se de alegria e foram buscar água quente com sal para lhe tirar o cansaço dos pés, limparam-lhe o corpo com panos húmidos, deram-lhe água fresca da nascente e prepararam-lhe uma sopa com pão embebido em vinho e carne de porco salgada e depois uma chávena de café preto a escaldar e finalmente dispuseram-se à sua frente e crivaram-no com perguntas, pois tinham passado dez anos sem nada saberem a seu respeito, mesmo nada, se estava vivo ou morto, se estava aqui ou além, se estava sadio ou doente.
Ele, porém, não foi capaz de responder a uma única pergunta e caiu num sono profundo.
– Nunca mais acorda – diziam uns.
– Foi doença que apanhou no estrangeiro – asseguravam outros.
– É castigo divino por ter fugido da guerra – segredavam alguns.
A mãe recorreu à curandeira do sítio e ela foi clara na prescrição:
– A mulher que ele ama tem de ir vê-lo, sabes, aquela cujo marido morreu no Ultramar, aquela que nunca o quis. Basta que ela o veja.
(...)
Quero dizer, meus amigos, por mais absurda que uma história seja – e esta é uma história absurda – o que de facto conta é a vida de cada um... Ou, por outras palavras, todas as formas de arte são patéticas, todas mesmo, exceto as que expressam a tua vida.