Há dias em que este texto pode ser o último e outros em que é apenas o primeiro, porque a escrita em mim é como a vida... Escrevi isto há muitos anos, antes de ir à tropa, numa altura em que tinha a mania e a pretensão de ser intelectual e, por isso, andava sempre a tomar notas acerca do meu mundo interior e do meio que me rodeava, mas o facto é que se trata de um pensamento que ainda hoje me persegue e atormenta. Em primeiro lugar porque nunca o compreendi na plenitude e, depois, porque continuo a pensar exatamente o mesmo. Ou seja, este texto pode ser o último. Este texto é apenas o primeiro. Por outras palavras, estou vivo.
Naquela altura, eu escrevia mal e porcamente, mas escrevia para caraças, lá isso escrevia. No caderno em que tomei nota deste pensamento, surge também a descrição dos pontos mais marcantes do dia e começa comigo sentado na beira da cama, em casa das minhas tias, onde então vivia, na Rampa, em Santo António, a observar o buraco da fechadura da porta do quarto, tendo ficado com a sensação de o compreender como se fosse um ser vivo, ou pelo menos o espírito de um ser vivo, aquele orifício engenhoso, e isso provocou-se uma vertigem dos diabos, de modo que me levantei e fui à casa de banho e tomei um duche de água quente e depois pus-me a cortar a barba – eu era novo, mas já tinha barba – e enquanto cortava a barba fiquei com a sensação de estar a fazer as coisas nas horas erradas e estava sempre a olhar para o parafuso que fixava o espelho à parede e comecei a sentir que também o compreendia, como se o parafuso tivesse alma e coração, como se fosse capaz de se apaixonar por outro parafuso, e isso inquietou-me sobremaneira.
De repente, fiz um corte na cara.
Depois, a cena transita sem explicação para a Marina do Funchal, que naquele tempo era o ponto de encontro de toda a gente. Lá estou eu sozinho a tomar café e a ouvir a conversa na mesa do lado. São dois rapazes e uma rapariga. Um deles disse assim:
– Tenho 24 anos e posso dizer que sou mais maduro do que tu, que só tens 19.
O outro não disse nada e aquele continuou:
– A nossa vida é feita de sucessões. Quanto mais velho, mais maduro.
De repente, o outro contra-atacou:
– Afinal, que sabes tu a mais do que eu? A tua ideologia, os teus desejos, os teus sentimentos são banais. Como podes ser mais maduro, parvo?!
A rapariga nada dizia, sorria.
Eu estava profundamente absorto naquela conversa, como se a conversa fosse o buraco da fechadura do meu quarto ou o parafuso do espelho na casa de banho e então alguém aproximou-se de mim pelas costas devagarinho e disse-me ao ouvido em voz alta:
– Pum!
Dei um salto na cadeira, a mesa balançou de cima a baixo e a chávena tombou e o café espalhou-se sobre o tampo e eu disse:
– Puta que pariu!
A minha amiga que acabava de chegar – já não sei quem era, porque não tomei nota do nome, mas escrevi que era pequenina e tinha uns olhos pretos enormes e o cabelo longo da mesma cor e era fraca de busto e ancas – soltou uma gargalhada muito vibrante e ficámos ali um bom bocado a conversar e eu bebi um gin tónico e ela também bebeu um gin tónico e, a certa altura, dei por mim a olhar insistentemente para um botão do casaco dela e era um botão simples, como qualquer outro botão, tinha quatro furinhos por onde passava a linha que o prendia à borda e eu estava dentro daquele botão como antes tinha estado dentro do buraco da fechadura e dentro do parafuso e dentro da conversa na mesa ao lado e isso incutiu-me uma colossal e arrepiante estranheza, mas ela não notou e depois disse-me adeus e foi-se embora muito bem disposta.
Na mesma ocasião, o trio da outra mesa também se levantou. Tinha-me já esquecido daquelas personagens, mas tomei nota do que disse a rapariga no momento em que abandonavam a esplanada:
– O amor não se ganha nunca, perde-se sempre.