Descontando o facto de a riqueza de uma pessoa residir apenas na quantidade de dinheiro que ela tem ao dispor para pagar contas, sonhos, taras e vaidades e sendo que esta condição nunca é relativa, mas concreta e absoluta, ou seja, quanto mais cacau o indivíduo tem mais rico é, podemos assumir que a verdadeira fortuna de cada um está na forma como lida com a pobreza. Esta, sim, é extremamente relativa, porque ultrapassa o peso do ouro e estende-se pela vasta superfície do ser, da ponta das unhas e do cabelo ao fundo mais recuado e inóspito da alma. A pobreza sustenta o princípio que norteia o desejo de salvação e também o caminho que o leva para o abismo onde mora o Senhor do Mundo. Por outras palavras, troca-se tudo por dinheiro e tudo tem um preço em dinheiro.
Escrevi isto num caderno de capa dura da marca “Flecha” numa noite de março do ano 2000, quando ainda vivia em casa das minhas tias, na Rampa, e elas cuidavam de mim e amavam-me com os seus corações vivos e ao fundo um cão ladrava – tenho uma nota a dar conta disso – um cão triste ladra na noite escura – e a casa não era a mesma que agora visito, era outra, como no poema de Ryokan:
vim ver o lugar onde nasci –
tudo abandonado!
pelo jardim
sobre a tosca sebe da casa
só folhas caídas.
A melancolia contaminava o texto em todas as páginas do caderno:
Ando como uma criança perdida no país das crianças perdidas. Daqui vejo o mundo inteiro, nada mais. Perdi a graça e os talentos. Agora, jogo paciência e ganho angústia para encarnar em mim todos os dias. Estou a matar-me. Mato-me todos os dias no olhar das pessoas com quem me cruzo. Já não sei do que tenho medo de confessar, esqueci-me de quais são os meus pecados, não sei do que me devo lembrar, nem estou seguro das emoções em que confiar.
Segue-se uma nota a indicar que são duas da madrugada e a lamúria prossegue:
Viver intensamente é difícil e mete medo. Talvez seja por isso que o tempo passa e eu fico sempre no mesmo lugar, às vezes infeliz, com dores, azias e agonias, outras vezes resignado, apagado, indiferente. Sonho e tenho esperança, é certo, mas não dou um único passo no sentido da sua concretização. Tenho medo e o medo paralisa-me. Não sou covarde, nem herói. Sou simplesmente um homem vulgar, medíocre, um homem parado no tempo, parado na cidade, parado dentro das mesmas coisas há tantos anos.
Eu tinha 32 anos naquela altura, ainda a viver com as tias e mal tinha viajado para fora da ilha, vejam bem, mas no caderno afirmo que a minha vida era uma história de esquecimento. Que estupidez! Não havia ainda nada do que me esquecer. Eram mais os vivos do que os mortos. No entanto, punha-me a queixar:
Preciso de dinheiro e não me sinto seguro no trabalho. Preciso de dinheiro, muito dinheiro, mas já não tenho idade para lutar por ele. Gastei a minha juventude no vazio dos copos e não fiz nada de jeito, nem sequer escrevi uma frase com qualidade, uma única frase que valesse a pena – eu que queria ser escritor! A imortalidade não me tornou imortal. Agora estou meio velho e cheio de medo. Preciso de dinheiro, mas não tenho génio para o alcançar. Porque será que precisamos de dinheiro? Que pergunta tão estúpida! Um homem tem de viver de alguma coisa.
Depois, talvez para me acalmar, escrevi a definição de ‘caridade’:
Capacidade de reconhecer a graça perdida do outro e saber lidar com ele no sentido do seu renascimento, sem jamais o confrontar com a sua miserável situação.
Não consigo precisar qual foi a fonte, mas de certeza que esta definição não é da minha autoria. Seja como for, no fim do caderno eram já quatro e meia e, ao fundo, um cão triste continuava a ladrar na noite escura... Talvez fosse eu...