Ele está cansado e dói-lhe a cabeça, dói-lhe muito a cabeça. Se calhar tenho um tumor na cabeça, pensa ele. Acende um cigarro e pensa que também pode ter um tumor nos pulmões. O autocarro está atrasado e ele fica ali à espera, a pensar no percurso que depois terá de fazer a pé lá em cima, nas zonas altas, entre a última paragem e a sua casa. A estrada é sempre a subir, é escura e só de pensar nisso dói-lhe ainda mais a cabeça e ele fica enjoado a cada passo que dá na imaginação, porque cada passo imaginado lhe agita no corpo o álcool que na realidade ingeriu.
É tarde.
O autocarro para num largo sem iluminação. Última paragem. Do lado esquerdo, fica uma vereda que conduz a uns casebres na margem da ribeira. Do lado direito, fica o caminho que ele tem de percorrer até casa. Ele sai e sai também uma mulher. São os últimos passageiros. A mulher fica parada a remexer na mala e tira um cigarro e pede-lhe lume. Ele acende o isqueiro e a chama ilumina o rosto da mulher. O autocarro está agora a fazer a manobra de inversão de marcha para regressar à base e ele diz que está a tentar deixar de fumar.
– Estou convencido que tenho um tumor nos pulmões – diz ele.
A mulher sorri. Tem os olhos pretos, a face esguia, o cabelo comprido. É morena. Deve ter trinta anos e um metro e setenta, pensa ele. As nádegas, repara, são bem salientes, robustas. As mamas também. A saia é curta, curtíssima. As pernas altas.
Ele acende um cigarro. Ela sorri outra vez.
– Estás a tentar deixar de fumar, não é? – Diz ela.
Quando acordou, soergueu-se de repente. Algo lhe dizia que estava num lugar extremamente perigoso. Notou-o depois pelo cheiro, pelo som do vazio, pela sombra das coisas. O ar era pestilento. Lá fora, havia água a correr e a cantar sobre pedras. Tocou na beira da cama e percebeu que estava suja, uma substância pegajosa. Um cão começou a ladrar ali perto e era um ladrar agressivo e ele pensou em catadupa o que estou a fazer aqui, porra, mas como é possível estar aqui, porra, o ato é tão bruto como a discussão acerca dele e haverá maneira de sair daqui, abro aquela porta, mas posso cair na ribeira e o filho da puta do cachorro vai morder-me e a gaja, onde está a gaja, não está aqui, deve ter ido lá fora e se eu saio ela persegue-me, a gaja vai andar o resto da vida atrás de mim e eu tenho de largar isto tudo da mão, qualquer pessoa é uma fantasia de si própria e um fantasma também e eu tenho de acabar já com esta porra de vida, eu já chorei e ri em todas as idades do mundo e agora vou vestir-me e que se lixe esta merda toda e amanhã apanho um avião, puta que pariu, subo aos céus e piro-me daqui, mas se calhar a gaja vem comigo, tudo bem, pode vir, é sempre bom ter uma gaja boa na cama...
De repente, um estrondo. A porta abre-se de rompante e a luz da lua entra no quarto. O cão foge a ganir. Uma silhueta surge no limiar da porta. Depois outra. A primeira silhueta entra no quarto. É um homem alto, magro, quase um esqueleto. Parece estar bêbado e ele nota que tem algo na mão, depois nas duas. É um machado. Atrás dele vem a mulher e começa a gritar e tenta impedir a agressão. O homem não diz nada e num movimento inseguro ergue o machado. Está nitidamente embriagado e ele percebe que tem de fugir, mas não sabe onde deixou a roupa. Levanta-se e apanha uma peça qualquer e sai a correr. Ainda esbarra na mulher e sente-lhe o corpo compacto, o hálito a tabaco, o cheiro a sexo.
– Vem aqui, seu cabrão! – Grita o homem do machado. – Vou-te cortar ao meio, seu filho da puta!
Ele sobe a vereda a correr e o seu corpo alveja na noite e ele sente nos pés descalços a violência do piso empedrado e depois sente um corte profundo no pé esquerdo provocado por um caco de vidro e lá atrás ouve o outro a dizer que vai matar toda a gente e a mulher a gritar e a seguir o homem começa também a gritar e ele pensa que nada retrata tão bem o desespero humano como ouvir um humano a gritar no meio da noite. Depois faz-se silêncio, abruptamente.
Ele para por um instante, ofegante, e olha para a peça de roupa que traz na mão. É a minissaia da mulher. Não lhe serve para nada. Atira-a para um canto e continua a correr nu a caminho de casa. Vai a coxear e para trás deixa um rasto de sangue...