Naquele dia, o barco que trazia a correspondência chegou duas horas antes do previsto. Entre as cartas contava-se uma endereçada a Sueed Filho, que ninguém nos Correios sabia quem era. Para dificultar, a morada correspondia a uma casa abandonada e o envelope não continha qualquer indicação sobre o remetente. O chefe do posto pediu ajuda aos serviços municipais e ao cabo de duas horas apurou-se que o destinatário era Muluko, o Doido.
– Quem diria que Muluko, o Doido, se chama Sueed Filho?! – Disse o chefe dos Correios, deveras perplexo.
Entregou a carta ao funcionário e ele partiu à procura do recetor, que era um sem-abrigo, o único que havia na cidade, indo encontrá-lo à entrada da praça, sentado no passeio, abraçado a um coqueiro.
Ao ver o carteiro vir na sua direção, Muluko, o Doido, agitou-se e começou a falar com o tronco da árvore e a rir baixinho. Depois, assumiu uma postura de grande seriedade e frieza. Estendeu a mão com altivez e recebeu o envelope. Disse obrigado e fez uma vénia carregada de arrogância, porcaria e mau cheiro.
Assim que o carteiro lhe virou as costas, Muluko, o Doido, abriu o envelope e retirou a folha escrita e pôs-se a ler muito concentrado, até que se levantou de supetão e começou a dançar agarrado ao papel e estava já no meio da praça quando subitamente estagnou.
Agitou o papel no ar e gritou em absoluto desvario:
– Uma carta de Deus!
E gritava cada vez mais alto:
– Uma carta de Deus!
Depois, correu na direção do Café Central e quando lá chegou soltou uma gargalhada de tal forma aluada que fez estremecer toda a gente em simultâneo, incluindo os três velhos na mesa do fundo, os únicos na cidade que conheciam a história completa de Muluko, o Doido.
– Tenho tanta pena deste rapaz! – Disse um dos velhos.
– Era um crânio de primeira água – Recordou outro. – E agora isto.
– A culpa foi de quem o obrigou a ir para o Seminário – concluiu o terceiro velho.
A gargalhada aumentou de intensidade.
Muluko, o Doido, ria a bom rir e dizia aos berros:
– Uma carta de Deus!
De repente, calou-se. Ficou sério. Colocou as mãos nas costas. Olhou para o chão, como que envergonhado, e saiu do restaurante devagarinho, a resmungar.
Os velhos pediram três copos de vinho tinto e puseram-se a falar de Sueed Filho, que era apenas um pouco mais novo do que eles. Tinha ido para o Seminário porque era o miúdo mais inteligente da ilha e só lá, no Seminário, poderia dar vazão a tamanha inteligência. Depois, viram-no regressar ao cabo de sete anos, já com a cabeça meio desativada. Nesse ano, porém, ainda o ouviram dizer três coisas muito acertadas, em três ocasiões distintas. Ouviram eles, os velhos, e muita gente da cidade também.
A primeira foi na excursão anual à volta da ilha, em março. No momento em que as pessoas estavam a merendar no campo, à sombra das acácias, Sueed Filho ergueu-se e disse, blandíloquo e cristalino:
– Eu não acredito em Deus porque não o consigo ver em todas as partes. Vejo-o muito bem aqui, agora, entre nós, mas não o vejo na guerra, nem na fome, nem na injustiça. São muitas as partes onde não o vejo. Por isso, é preciso ter em conta que certas ausências mais não são do que puras inexistências.
A segunda coisa que Sueed Filho disse e impressionou o povo foi durante os Jogos Florais, em maio. Ele subiu ao palco e falou assim:
– Eu acredito no Amor, porque, ao contrário de Deus, consigo vê-lo em todas as partes. Vejo-o muito bem aqui, agora, entre nós e também o vejo na guerra, na fome, na injustiça. Mesmo quando não o vejo, sei que está lá. Por isso, é preciso ter em conta que certas inexistências mais não são do que puras ausências.
A terceira coisa que Sueed Filho disse e fez a multidão pensar aconteceu na Missa de Natal, quando ele apareceu como por encantamento no púlpito e declarou num tom claro e angélico:
– A verdade desarma-nos todos os dias e no último aniquila-nos.
Depois, nunca mais disse coisa com coisa. Os anos rolaram e ele fundiu-se com o tempo e o lugar, perdeu a idade e dele perdeu-se a memória, até que passou a ser simplesmente Muluko, o Doido. No entanto, ainda há quem lhe escreva...