Aqui há dias eu estava a beber uma cerveja num bar e de repente deu-se um acontecimento que me fez lembrar uma história que o meu pai me contou dez ou doze anos antes de morrer, em que ele dizia que certa noite tinha perdido o sono por causa de maus pensamentos, pensamentos sem explicação, disse ele, e então levantou-se por volta da meia-noite e meia, vestiu a roupa de trabalho e foi até ao quintal espantar os demónios que o apoquentavam, pondo-se a circular entre o galinheiro, a loja e o terraço, quando de repente avistou uma luz em movimento no meio da fazenda do outro lado da estrada, como se fosse um olho-de-boi na mão de uma pessoa.
Naquela altura, a fazenda era um baldio, um hectare de mato e silvado. Longe iam os tempos em que estava toda agricultada, muito viçosa e bem cuidada, com as paredes dos socalcos aprumadas e os carreiros limpos, o palheiro a brilhar bucolicamente lá no meio e as levadas desobstruídas, pois esses tinham sido os tempos áureos dos antepassados, mas o meu pai ainda mantinha um ou dois poios ativos e tratava de duas ou três árvores de fruto, entre as quais um pequeno abacateiro, que na ocasião estava carregado, com alguns galhos quase a tocar no chão.
Vendo a luz em movimento, o meu pai pensou assim: Aquilo é um filho da puta que vai roubar peras.
Então, pegou num cabo de enxada, que tinha guardado num recanto estratégico, tendo em vista enfrentar eventuais situações daquele género, tal como guardava pedras ou pedaços de ferro, e desceu a escadaria, atravessou a estrada e meteu-se na fazenda. Avançou sorrateiro na direção do abacateiro, sem medo de tropeçar, pois conhecia o chão de cor, e, como esperava, deparou-se com um indivíduo a apanhar abacates. A lanterna estava agora desligada, metida no bolso de trás das calças, e à medida que ele colhia os frutos colocava-os num saco de plástico grande.
O meu pai disse-me que o filho da puta estava tão descontraído que até assobiava baixinho, de modo que ficou mesmo estuporado, ficou com o sangue a ferver, sabes como é que eu sou, disse-me ele, fiquei com o sangue a escaldar.
Por isso, foi direto ao assunto de bico calado – falar para quê? – e pregou-lhe duas pancadas sem aviso com o cabo de enxada, ou melhor, duas vergalhadas, foi este o termo que o meu pai usou, uma nas costas, outra nas pernas, e o gajo deu um grito e saltou para o poio de baixo e fugiu sem acender o olho-de-boi, às escuras. Depois, o meu pai pegou no saco das peras e trouxe-o para casa – o saco numa mão, o cabo de enxada na outra.
– O lanzudo deve ter ficado todo arranhado no silvado – disse o meu pai, com satisfação.
– É uma pessoa como outra qualquer – disse eu.
O meu pai retorquiu:
– Se eu apanhar essa pessoa outra vez na fazenda, dou cabo dela.
Pois aqui há dias eu estava a beber uma cerveja num bar e de repente vejo passar na rua um sem-abrigo que conheço e a quem dou sempre uma ou duas moedas. É um tipo de barba hirsuta, magro, olhar alucinado e ele parou quando me viu, mas hesitou em se aproximar. Fiz um gesto para que viesse e saudei-o com um aperto de mão, perguntei-lhe como estava, dei-lhe dois euros, ele agradeceu e depois mostrou-me as sapatilhas novas, umas sapatilhas que uma senhora lhe tinha oferecido, porque a sola das outras estava rota e os pés já tocavam no chão.
Alguns clientes na esplanada começaram a ficar perturbados com a situação, o gajo a me mostrar as sapatilhas novas, a dizer que eram boas, de modo que quando ele se foi embora, um indivíduo que estava com a família numa mesa ao lado da minha pôs-se a dizer em voz alta que não podia ver gajos como aquele, drogados, vadios, não querem trabalhar, são violentos, e por ele exterminava aquela gente. Como o outro já não estava lá, percebi que a mensagem era para mim, obviamente, como se eu fosse parte do outro, e era também uma provocação, uma tentativa de me fazer saltar para o ringue e dar à língua e foi então que me lembrei da história do meu pai sobre um filho da puta que certa noite fora roubar abacates à nossa fazenda. Não sei porquê, mas foi disso que me lembrei. E fiquei com o sangue a ferver...