Hoje escrevo de costas para o mar. Se quem lê estas linhas me pudesse ver, quando as escrevo, através delas, veria o mar atrás de mim. Não pode, mas consegue imaginá-lo ou, pelo menos imaginar um mar qualquer.
Para quem cresceu junto à costa, o mar não é estranho. É incerto, quanto baste, mas não é estranho, mesmo quem alguma dessa incerteza seja quase estranhamente regular.
Por exemplo, a maré sobe e desce ao ritmo dos movimentos de translação e rotação da Terra e da Lua que nos acompanha (mostrando-nos sempre a mesma face) com uma regularidade tão previsível que sabemos calcular, ao minuto, o horário, a amplitude e a altura, ao decímetro, das marés astronómicas, com muitos meses de antecedência.
Mas mesmo dentro de toda esta regularidade astronómica, é quase impossível prever a menos de alguns dias ou horas, as variações meteorológicas, vulcânicas ou sísmicas com maior potencial impacto nas nossas vidas.
O Mundo é um pouco como este mar. De algum modo é previsível ao nível astronómico, mas cada vez nos parece mais volátil no dia a dia, com muitas mudanças globalmente impactantes num curto espaço de tempo.
Nos últimos tempos enfrentámos vários problemas globais, a começar por uma pandemia que provou a necessidade de termos respostas globais, o crescimento das desigualdades sociais, o ressurgimento de nacionalismos, as guerras comerciais, as alterações climáticas, os ataques cibernéticos (cada vez mais graves num mundo tão informatizado), a precariedade laboral, os ventos de guerra que sopram cada vez mais fortes.
O Professor Manfred Steger, um dos especialistas mundiais na área da Globalização e dos Estudos Globais, considera que atravessamos uma Era da Grande Inquietação (Great Unsettling, no original), com a intensificação de dinâmicas globais de volatilidade, insegurança e deslocação, e destaca dois eventos em particular que concorrem para o aumento desta sensação: a pandemia da CoViD-19 e a intensificação da competição entre grandes potências mundiais.
O primeiro mostrou que a cooperação científica à escala global funciona, mas sublinhou também as fragilidades na relação com o chamado Sul Global, onde tardaram a chegar as vacinas, que noutras partes do mundo passavam de prazo sem ser usadas. O segundo, em parte relacionado com o primeiro, confirma que o Poder tem horror ao vazio. Quando a anterior administração republicana dos EUA abdicou do seu espaço nas organizações internacionais, optando por uma lógica de confronto, China, Rússia e Índia não tardaram em ocupar o espaço vazio e a conquistar influência, principalmente junto do mesmo Sul Global.
Para agravar, cresce o impacto das alterações climáticas. A desregulação laboral e ambiental em muitos países necessitados de investimento estrangeiro levou à deslocalização de várias indústrias principalmente para países do Sul Global, que tem provocado, de forma irreversível, a destruição de habitats e de modos de vida tradicionais, com a morte e contaminação química de lagos e cursos de água, ou a instalação de minas a céu aberto onde antes eram florestas e campos agrícolas, criando ondas de migrantes, internos e externos, que não têm para onde voltar.
Não é por estarmos de costas voltadas para o mar, que deixarão de chegar, à procura de uma vida melhor, de um lugar que possam chamar casa na terra daqueles que envenenaram a sua. Por não terem alternativa.
Nós ainda temos alternativas. Uma delas é defender os seus direitos.
Porque podíamos ser nós a navegar nesse mar.