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Artigo de Opinião

DE LETRA E CAL

25/11/2024 07:50

As fotografias da infância olham-nos como se fossem outros de nós. Aqueles que ficaram nas outras casas, nos outros lugares, com os ecos de um outro sol e de uma outra chuva, com a matéria de outros dias.

São sempre outros que nos olham, tornados diferentes de hoje pelo tempo, pelo esquecimento e pela memória.

Contudo, ainda nos vemos neles, numa essência perene daquilo que fica em nós do que fomos. Essa espécie de construção que avança, mas que se constitui, ao mesmo tempo, de vários momentos e de várias formas de ser.

Nesse sentido, uma fotografia é sempre um indício, uma pista essencial para nos descobrirmos afinal completos, apesar das perdas interiores e exteriores que um percurso e uma vida dentro dele acarretam.

Somos a síntese de todas as coisas que perdemos e que guardamos, não somos uma matéria facilmente identificável, precisamos todos de analisar as provas, os vestígios, os indícios que ficam. Precisamos, até, e por vezes, de nos debruçarmos sobre o futuro para nos vermos melhorar no passado.

É desse lugar que vemos o que guardamos dos nossos pais, o que deles se fortificou ou transformou em nós; o que trouxemos das crianças que fomos, daquela forma de olharmos o mundo pela primeira vez, da forma de acreditarmos e imaginarmos a vida em nós.

Somos uma síntese de todos os anos, de todas as escolhas, de todas as vitórias e também, ou sobretudo, de todos os fracassos.

Vejo-me ainda a correr, a última na fila de miúdos que conquistavam os lugares da infância como quem conquista um país. Vejo-me a última da fila, a lutar contra a falta de habilidade física, a lutar contra a anatomia futura que se deixava antever na criança que fui.

Vejo-me a chegar à escola pela mão do meu pai, a sentir-me diferente, sempre diferente dos meus pares, sempre uma outra coisa que não aquele coletivo ao qual queria pertencer, mas sem a dissolução da minha verdade.

Vejo-me adolescente na rebeldia e na assimetria com o mundo. Vejo-me depois já fora de tudo isto, absorvendo o mundo como se ele fosse infinito. Vejo-me a errar demasiadas vezes, mas vejo, também, em todas elas, a beleza de uma totalidade, sem reservas, sem proteção, montanha-russa de uma liberdade para cair de coração em riste.

Vejo-me inapta nas aulas de educação física, no grupo dos não escolhidos para as equipas dos dois lados. Nisso nós, os excluídos, éramos de uma constância a toda a prova, haveríamos de ficar ali para sempre.

Vejo-me nos livros que me foram salvando como se fossem barcos numa tempestade de águas turvas e tormentosas.

E, sobre todas estas geografias a mesma matéria solúvel, a mesma matéria que se compõe de tudo o que nas fotografias agora me olha. Os restos do que fomos sendo, do que fui sendo, a matéria que se transforma e que persiste. Uma matéria viva volátil e constante à vez. A matéria viva que somos, que sou, é contraditória deste o início. Não há como sermos apenas uma coisa fixa, uma substância pacífica, uma imutabilidade.

De fixo ficam apenas as fotografias, mas, mesmos elas, no movimento de leitura e comparação de passados, transportam a inconstância do que fomos e do que vamos sendo.

Matéria viva alada e contraditória que continua e que prolonga uma narrativa ao longo deste tempo que nos é dado para sermos memória e ainda futuro.

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