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Artigo de Opinião

DE LETRA E CAL

28/10/2024 07:45

Durante largos meses, eu e o meu pai sonhámos com uma viagem à Suécia. Era mais uma questão de fé do que uma possibilidade real, mas o meu pai era talvez o mais entusiasta da sorte que nos havia de sair certeira se completássemos a caderneta de cromos da Pipi das Meias Altas.

Depois de comprada a caderneta, todos os dias o meu pai trazia os cromos e, numa afinidade rara entre a minha infância e a esperança infantil do meu pai, lá nos entusiasmávamos com os cromos novos e expressávamos a desilusão com os cromos repetidos. Cada um deles significava mais tempo entre o nosso sonho e a Suécia, para onde havíamos de viajar os dois, com a minha mãe. Estava garantido na capa colorida da caderneta: “Ganha uma viagem à Suécia e leva contigo os teus pais”.

Claro que a minha mãe desconfiava daquela fé cega numa caderneta de cromos e nas suas promessas. A Suécia ficava tão longe de tudo, ficava sobretudo longe de um quotidiano que talvez lhe pesasse mais ela. As tarefas domésticas, o marido, as crianças a crescerem com sonhos. Alguém tinha de meter os pés no chão. Uma ilha é um território quase alado, mas a realidade dentro dela afasta, muitas vezes, o voo.

A minha mãe já estava habituada a largar mão do sonho. Deixou de trabalhar para criar os filhos, não sonhava já com os amores das fotonovelas e sabia que os dias podem ser longos e difíceis e a noites cansadas e sem ilusão.

O meu pai, porque mais liberto, porque saía todos os dias da casa e da sua realidade, tinha sempre essa capacidade de sonhar. Havia de enriquecer, de receber uma herança, de ganhar um prémio. E, se tudo falhasse, pelo menos podia ir à Suécia comigo. Afinal, parecia tão fácil colecionar os cromos, encher a caderneta, concorrer e ter a sorte em que ele acreditava.

Ainda assim, haviam repetidos a mais, espaços em branco para os cromos difíceis, coisas demasiado reais entre o nosso sonho e a Suécia.

Não me lembro se preenchemos a caderneta, se a chegámos a enviar assim completa e a transbordar da fé e da possibilidade da sorte. Sei, contudo, que não fomos à Suécia. Nem nesse ano, nem nos seguintes, nem nunca.

Aquele sonho não se repetiu como os cromos repetidos, provavelmente foi substituído por outros, ou ficou soterrado na minha infância a fugir todos os dias para uma idade adulta que acabou por chegar demasiado rápido. Talvez o sonho do meu pai também tivesse ficado soterrado na realidade, nos dias de trabalho, nas idas à ponta do cais para ver os barcos que partiam e perceber que havia sempre de ficar longe da Suécia e do Mundo.

Até a Pipi das Meias Altas cresceu, coisa que na altura nos parecia impossível. Mais tarde lembro-me de a ter visto, já com uma idade demasiado numerosa para as tranças, as sardas e as tropelias. Ainda havia qualquer coisa da Pipi no sorriso. Ainda havia qualquer coisa dos meus sonhos com o meu pai, mas já tudo estava tão distante como hoje.

O meu pai já não está, a Pipi já não volta, e eu já não coleciono cromos e coleciono cada vez menos a fé em coisas mais ou menos impossíveis. Ficou, de tudo isto, a memória da viagem que nunca fiz com o meu pai.

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