Os porta-bagagens abertos eram fonte de cheiros e sabores.
Escorriam os licores nos brindes de familiares e amigos.
Partilhavam-se as tradições, trazidas em cestos de vime.
As vozes clareavam-se na poncha regional ou de tangerina.
Os acordes de violas e acordeões atropelavam-se em euforia.
Ensaiavam-se uns passos de bailinho.
Faziam-se coros de romarias de pastores:
«Somos pastores, alegremo-nos…
Siga esta romaria, a caminho de Belém…
Nós viemos toda a noite, toda a noite em romaria…»
Espontaneamente, surgiam despiques com sabor a vinho seco.
Rodava-se pelas viaturas de caixa aberta, trocando votos e saudações.
«Da serra veio um pastor,
à minha porta bateu…»
Não, ninguém batia, porque
as portas estavam levantadas,
os corações escancarados,
os braços abertos a quem viesse…
Na Missa do Galo, cantou-se ao Menino;
falou-se da recusa do acolhimento,
da solução da manjedoura,
dos bafos de aquecimento
de animais pachorrentos e amigos.
Os Anjos anunciaram o Nascimento :
«Glória in excelsis Deo!
As campainhas soaram:
«Virgem do Parto, ó Maria,
Senhora da Conceição,
Dá-nos as Festas felizes,
a Paz e a Salvação!»
Molharam-se, de novo, as vozes,
A cantoria foi mais forte,
Os afetos mais solidários:
Era o Dia de Natal!
A maioria foi continuar a Festa em família!
O VELHO NOVO ANO
Descíamos à cidade em fim de tarde.
Os meus olhos de criança devoravam as luzes que trepavam pelos troncos e ramos, alegrando praças e ruas.
As montras ofereciam cor e brilho.
O circo era encantamento boquiaberto,
O poço da morte era um medo curioso, irrecusável.
O carrocel era viagem inevitável.
Por aqui e por ali, grupos de tocadores e bailadores cantavam a despedida do Velho.
Da barraca do sai sempre, trazíamos bugigangas, abraçadas como fortunas.
Na tasquinha, enfeitada de balões, comia-se a sandes de vinho e alhos, ou filete de espada.
No mar calmo, repousava o hidroavião, ave gigante em descanso.
Ao largo, os cruzeiros inundados de luz e orquestra, ouvida do cais, vestido a rigor.
«Não largues a mão do pai».
Às onze iniciávamos, cansados e felizes, o regresso.
No alto da encosta, a paragem, para sorver as gambiarras que subiam as ladeiras do anfiteatro, e aguardar o «fogo».
À meia noite em ponto, ecoavam as sirenes dos vapores ancorados, os sinos das igrejas saudavam o Novo Ano.
E logo subiam os foguetes de cana, semeando cor e festa.
As «lágrimas» desciam lentas, os «lagartos» ziguezagueavam,
as cores do fogo de artifício misturavam-se em ramos coloridos.
Uns choravam as saudades de quem partira ou vivia distante.
Nas mãos não havia passas.
O que passava eram contas do terço rezado em surdina.
Depois, com cheiro a pólvora, a subida prosseguia silenciosa, cada qual viajando consigo e com a sua vida.
Cada qual construindo planos e desejos de um Ano Feliz!