Odete Santos, Jacques Delors e Wolfgang Schäuble encontram-se às portas do céu. ‘Por aqui?’ perguntam-se mutuamente enquanto esperam pela gerência do estabelecimento. ‘Que trio mais improvável’, pensa S. Pedro quando se aproxima. Uma histórica comunista portuguesa feminista e lutadora, um socialista francês e impulsionador do projeto europeu e um conservador alemão, que apesar de ter ficado numa cadeira de rodas, devido a um atentado, nunca desistiu da luta política. Na verdade, o falecimento dos três no mesmo dia, precisamente no fecho deste turbulento ano 2023, indicia maiores semelhanças entre o espetro democrático, que diferenças abissais entre estes três políticos.
Foram três políticos que desafiaram a mediocridade na política. Concorde-se ou não com os seus objetivos políticos, sempre se pautaram pelo enquadramento institucional que a democracia europeia lhes concedeu. Nunca questionaram – como infelizmente se torna cada vez mais habitual hoje em dia – os pilares da democracia parlamentar. E é por isso que os seus opositores políticos diretos recordam a sua vida com respeito. Julgo que esse deveria ser o grande objetivo de qualquer agente político: defender convictamente os seus ideias, respeitando a diversidade, sem acicatar ódios e extremismos tribais.
O populismo xenófobo e misógino é um alimento indigesto para os partidos moderados. Sem dúvida que é o caminho imediato mais fácil para ganhar votos, criando a ilusão de “dizer as verdades” que o povo pensa, mas “ninguém assume”; “os políticos são todos iguais”; “todos roubam”, etc. “Verdades” essas que não passam de meros cavalos de Troia para fomentar a crispação na sociedade, omitindo que o antagonismo social só conduz a retrocessos civilizacionais. No final vomitamos todos esse veneno que mata qualquer sociedade.
Um exemplo atual vem da América Latina. Ver as medidas radicais aplicadas na Argentina pelas mãos do recém-eleito Javier Milei (que dissolvem toda e qualquer instituição) faz pensar nos aplausos que colheu pouco antes por parte de políticos que vão a votos, por cá, a 10 de março.
O papel da política não é nivelar por baixo. É ambicionar mais para a comunidade do que um status quo vigente. A experiência Argentina levada até ao seu final lógico, significa questionar a necessidade da manutenção de qualquer instituição, incluindo do próprio presidente. É o arrasar de qualquer ordem social. Mas, claro, como qualquer autocrata, suga todo o poder do Estado – o tal Estado que nega ser necessário para a restante sociedade, para o aplicar na sua exclusiva e egoísta vontade, de forma autoritária e prepotente. O perigo de cair nesta esparrela política é cada vez maior, seja em que país nos encontramos.
Assim, olhamos politicamente para o ano que se avizinha como um super-ano eleitoral, com eleições regionais nos Açores, legislativas em Portugal, eleição do Parlamento europeu e eleição do Presidente dos EUA. A instabilidade que pode surgir em todos estes níveis, muito por conta da ascensão do populismo, deve fazer-nos pensar sobre que século se está a construir. O retorno dos autocratas faz-nos regressar ao pior do século XIX em vez da prosperidade da segunda metade do século XX. Certamente que nenhum dos três políticos que esta semana se encontraram nas portas do Céu desejariam esse retrocesso civilizacional para 2024.