A calçada madeirense é um elemento representativo do nosso espaço urbano e da intrínseca relação entre a geodiversidade e a identidade cultural da Madeira. É elucidativa da capacidade inventiva do madeirense que com artifício (e muita paciência) desenhou o nosso chão.
Desde os séculos XV e XVI, os mestres calceteiros madeirenses extraíram calhaus rolados nas praias locais, selecionaram-nos e seccionaram-nos para desenharem pavimentos geométricos. Este gesto, repetitivo, transmitido entre gerações não é apenas um reflexo do ambiente geológico da ilha, como também uma demonstração da habilidade matemática e geométrica dos calceteiros neste desenho pétreo originando um palimpsesto de formas, padrões e geometrias no nosso chão comum.
Apesar da importância histórica, social e cultural (e se ainda for necessário outro motivo: turística), fui recentemente alertado pelo engenheiro-geólogo João Baptista para uma caricata substituição de pavimento no recinto da Igreja Inglesa do Funchal, edifício construído em 1822. Tal intervenção, por mais inócua que possa parecer, revela a já habitual falta de sensibilidade e respeito pelas características arquitetónicas não só dos lugares como da região num todo. O edifício da igreja, uma referência da presença britânica na Madeira, viu o seu pavimento original ser substituído por incaracterísticos cubos de basalto de 8x8, sem a devida consideração pela sua importância cultural e social. O caso torna-se ainda mais caricato se pensarmos que durante várias décadas foram os ingleses que difundiram estes pavimentos nas suas quintas, valorizando-os enquanto uma expressão cultural.
A intervenção, pelo que apurei, foi realizada sem um estudo adequado e sem acompanhamento arqueológico, resultando numa perda significativa da nossa identidade construtiva. A negligência na escolha dos materiais e a precaridade da execução da obra comprometeu a integridade do chão que envolve o edifício, ignorando por completo as especificidades que faziam daquele pavimento um elemento geométrico único e uma parte integrante da identidade do lugar.
É ainda mais surpreendente que um edifício com a relevância histórica da Igreja Inglesa ainda não esteja classificado como imóvel de interesse municipal (no mínimo). Esta falta de reconhecimento formal impede a implementação de medidas de proteção adequadas, expondo o edifício a intervenções desastrosas como a que infelizmente pude presenciar.
Que este caso sirva de alerta para a necessidade urgente de proteger e valorizar o património arquitetónico da Madeira, nó só dos edifícios como também dos outros elementos arquitetónicos. A calçada madeirense não é apenas um pavimento pétreo desconfortável aos saltos agulha, mas uma expressão social e cultural vinculada a um desenho de chão.