O salão do Orfeão Madeirense era o teatro de operações e a grande mesa de ping-pong, o palco principal. Havia outros postos: as máquinas de costura, por exemplo, ou outros lugares criados conforme a necessidade. Todos os dias, depois do trabalho, o ponto de encontro era aquele salão e eu, depois das aulas, dava uma ajuda e cortar tecidos, a colar lantejoulas ou a varrer o lixo da noite anterior. Vezes sem conta, os adultos vararam a noite, fazendo e desfazendo fatos, experimentando estratégias, abortando ideias, mas sempre animados e ansiosos por desfilar na Avenida. Foram ainda muitas as noites, em que, cansados, acabámos por adormecer por cima de um chão de esponjas, mulheres para um lado, homens para outro e nós, as crianças, a monte. Acordávamos com o cheio do café ao lume e dos papo-secos ainda quentes que alguém ia buscar à Mariazinha. De resto, havia sempre algum petisco. Sandes, bolos, um dentinho de atum de escabeche ou umas moelas. Ficávamos exaustos, sim. Nunca com fome!
Tal como em tudo, o segredo era a alma do negócio e, obviamente, que de quando em vez, apareciam "mirones" a tentar ver os fatos que tomavam forma. Aqueles que andaram metidos nestas alhadas hão de recordar o espírito competitivo que se instaurava entre as trupes, pois todas almejavam ganhar o prémio final, mas sobretudo os aplausos do público nas ruas da cidade. No meu caso, a situação era por vezes difícil porque eu era aluna do Professor Artur, do Professor Rui Pedro e da Professora Maria José, cuja trupe era a nossa maior rival. Ainda me lembro das tentativas de extorquirem informação e eu, consciente do jogo, ia-lhes alimentando a curiosidade, obviamente sem nunca revelar nada. Quantas e quantas vezes, já no Savoy e o desfile prestes a começar, lhes ouvia dizer: aaah sua peste!!! Enganaste-nos!
É impossível descrever estes dias. Além da memória já me falhar, não consigo fazer jus ao ambiente, à união, à alegria que fermentava a criatividade. Cada vez que um fato ficava pronto, o êxtase era total e mais alento havia para continuar a jornada. E porque a vida decorria em paralelo, ali se celebraram aniversários, baptizados, ali se fizeram casamentos, ali se desfizeram casamentos e ali se fizeram amizades para toda a vida. Muitas mesmo!
Um dia, com os meus pais, à volta da panela (o jantar era feijoada) e eu a fazer os trabalhos de casa em cima da mesa de ping-pong; o João a cortar mais esponja e a Maria Carlos, de ferro na mão, a pregar a entretela no lamé, eis - que alguém diz:
- olha, vai dar a descolagem do Challenger.
Largamos tudo e ficamos de olhos grudados no pequeno écran (era um aparelho pequeno, daqueles portáteis). Era um momento solene. Para mim, era a ficção científica materializada à minha frente; a acontecer, de verdade.
De repente, o Challenger, explode! Zás!!!! Tudo em chamas! Tudo pelo ar! Ainda ficamos por largos momentos presos à TV, procurando dar algum sentido a tudo o que os nossos olhos tinham visto, ao vivo [e a preto e branco]. Sete vidas se esfumaram, assim, em segundos. O Challenger despedaçou-se e despedaçou várias famílias. Engolimos as lágrimas e escondemos o quanto o coração apertadinho nos dificultava a respiração. Ao invés, pegamos no prato e enchemos a barriga, antevendo mais uma noite longa.