Ferreira Fernandes recordava-nos ainda há dias, a propósito da reabertura das esplanadas em Portugal, o dizer de George Steiner, a «Europa é feita de […] cafés», o lugar onde ela se reinventa, segundo o cronista. Durante a guerra, só os eleitos se podiam sentar nos cafés de Lviv, reinventando-se. Há uns anos, pareceu-me que todos, homens e mulheres, se podiam sentar nos cafés turcos da parte europeia de Istambul. Hoje, talvez não seja o caso, pelo menos em determinados encontros de alto nível na Turquia, mesmo quando um dos homens é europeu.
Ouçamos então Zagajewski: «[…] Porque é que cada cidade tem que tornar-se Jerusalém / e cada homem um Judeu? / E agora não resta mais nada do que fazer à pressa as malas / Sempre / Quotidianamente / Partir sem descansar / Ir a Lviv / Porque ela existe / […] Lviv está em todo o lado». Esta memória de Lviv é de alguém que quase aí não viveu, que teve de fugir. É uma memória de futuro. Não será muito diferente da memória que a camponesa Muanacha António, de 29 anos, tem de Quissanga, na província de Cabo Delgado, Moçambique, donde teve de fugir com o seu marido, os quatro filhos e a mãe, em 2020, quando os ataques terroristas de cunho alegadamente islamista se intensificaram. Ela conta-nos que aí sabia onde abrir o campo para a agricultura. Agora, não sabe. Também não será muito diferente da memória da família de Salimo Muanha - como muitas outras -, que deixou Palma para trás fugindo dos «insurgentes» e caminhou dezoito dias, pela mata, indo e voltando da Tanzânia, para chegar ao refúgio de Pemba. Salimo explicou que «voz de tiro é como voz de leão… não confia» e que «alguém quando anda sem nada, só a confiar de ajuda, às vezes, a cabeça não fica bem». A dor chega-nos em português, língua em que nós, incluindo o presidente do Conselho da União Europeia, o secretário-geral das Nações Unidas e o director-geral da Organização Internacional para as Migrações, sonhamos.
Este escrito teve origem num rosto, o de Rubina Sousa - uma das pessoas desalojadas pelo temporal que assolou a ilha -, que foi capa do Diário de Notícias da Madeira em 29 de Março. Rubina vivia na Zona Velha, «na porta onde está pintada uma sereia a baloiçar», onde a angústia baloiça pelo menos desde o 20 de Fevereiro. Rubina tinha uma máscara, daquelas que demorarão mais de quatrocentos anos a desaparecer. Quantos anos demorarão a desaparecer a precariedade, a pobreza e a desigualdade social?
Na passada sexta-feira, entrou-nos em casa o juiz madeirense que leu a decisão instrutória no processo Marquês, e fê-lo diante de uma obra que revisita os Painéis de São Vicente, confundindo-se o seu rosto, por vezes, com os rostos que habitam esses painéis. Aquando de um restauro dos painéis originais, o próprio rosto de São Vicente sofreu um retoque que «sobrepôs, em larga medida, a zona do original». O retoque requer uma minúcia de filigrana para não afectar o original. Podemos discordar do juiz e das razões aventadas. O que não podemos fazer é propor que seja afastado da magistratura por uma decisão judicial. Assim, não haverá Estado de Direito que nos valha, e os populismos autoritários já rondam. Por último, em mês de Abril, viva o 25!