Quantas e quantas vezes somos tão assertivamente defensores das boas regras e dos bons costumes e repugnamos aquele que falha, como se cada um de nós fosse santo e irrepreensível. Afastamo-nos do que chora, do que está descalço, do que pouco ou nada tem para vestir, do que chega ao meu país à procura de trabalho e que é tão diferente de mim e pelo qual não sinto a maior afinidade ou misericórdia.
Como é possível que entre janeiro e março deste ano tivessem morrido, pelo menos, 441 pessoas a tentar chegar à Europa e que metade desses infortúnios se verificaram por atrasos nas operações de resgate? Olho com alguma esperança para o acordo para a reforma das regras de asilo e das migrações, alcançado no dia 8 de junho (Dia da Solenidade do Corpo e Sangue de Cristo), no Luxemburgo, entre os Estados-Membros da União Europeia, e apenas desejo que se consiga lobrigar que estamos perante pessoas que fogem da guerra, da fome, da miséria e que procuram uma nova oportunidade no país de acolhimento.
Quantas crianças, mulheres e idosos são sujeitos a situações diárias de violência doméstica, que nem sempre é visível, e não encontram na sociedade um abraço, um refúgio, um amparo? Os Tribunais, pelos mais variados motivos e fundamentos, demoram na apreciação dos processos que lhes são submetidos e com tal procrastinação as vítimas ficam, ainda, mais desprotegidas.
E as jovens, as mulheres que são violadas e que não apresentam a sua participação criminal contra o agressor pelo facto de se sentirem culpadas, envergonhadas? Infelizmente a sociedade continua a fazer sentir a estas vítimas que não podem ter alguns comportamentos ditos de "risco", pois, se assim for, então, "colocam-se a jeito".
Não, não pode ser! O caminho deve ser o contrário. O caminho de uma sociedade que se define como um Estado de direito democrático, que se baseia no respeito e na garantia da efetivação dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos, deve traduzir-se no estabelecimento de políticas que auxiliem todas as pessoas (sobretudo as mais fragilizadas) a defender as suas liberdades e garantias num país que tem na Justiça um dos seus pilares. E esta Justiça deve estar apta a acolher e a trabalhar com as vítimas, com os agressores, com todos os intervenientes que a procuram e que almejam uma decisão justa.
Parece que vivemos numa "sociedade de surdos" e cegos, alheia ao sofrimento, à fome, e à sede de tantas pessoas, sem perceber que a grande riqueza se encontra na sã abertura ao próximo, ainda que pense de forma tão diferente da nossa, pois acendemo-nos uns nos outros!
Numa determinada tarde de um mês de setembro, na casa de uns grandes amigos que carrego no coração, conversei com uma pessoa extraordinária, a tia Lucinda, que me foi contando a sua história…, viúva e trabalhando, sempre com um sorriso, educou as suas quatro filhas, hoje já avós, transmitindo-lhes que quando entregamos a vida como dom, então, ela multiplica-se.
Que saibamos, todos, como a tia Lucinda, acolher e entregarmo-nos ao próximo, nos diversos quadrantes em que nos encontramos, para que, então, a nossa vida se transforme numa vida, verdadeiramente, fecunda!