Tenho a pele do meu pai, os pés da minha avó e talvez um certo espírito da minha mãe, que nos faz parecidas sem o sermos realmente.
Sou assim, como todos nós, uma mistura de passado, presente e devir. Se pensarmos bem, vimos sempre de um lugar onde nunca estivemos e vamos para um outro lugar que ainda não conhecemos, do qual não sabemos as coordenadas e a geografia.
Entre estes dois lugares, construímos aquele que é o nosso lugar, de legados e sonhos ainda por realizar.
Somos uma construção perene e, ainda assim, temos em nós tanta coisa que se faz infinita e eterna, porque a transportamos na memória que existe e na que vamos construindo.
Uma construção que não cessa enquanto em nós existir força e vontade. E, através de nós, tanta coisa sobrevive. Os lugares da nossa família são também os nossos. Sobrevivem as casas que habitamos e quase que conseguimos regressar a elas de memória.
Vejo ainda a casa dos meus pais, a minha, como se ela não se tivesse alterado, como se ainda persistisse mesmo no cimo das escadas, por onde regressávamos sem saber que um dia não seria aquele o regresso. A luz do quintal continua acesa, a mãe em volta do fogão, o cão primeiro, composto de vários cães como se ele próprio fosse a nossa filiação. Tudo intocado como se ainda pudéssemos regressar ao lugar primeiro.
Nós ainda pequenos, como se aquela dimensão fosse a única verdade e tudo o resto uma construção involuntária. Aquela construção que realmente não escolhemos, mas que se fez em nós como se fosse o único caminho possível. E era.
Não podemos parar o tempo por mais feliz que ele tenha sido. Até porque a felicidade só se sente realmente depois das coisas felizes serem elas próprias passado.
Ninguém é totalmente feliz no tempo presente. Há muito ruído e muita proximidade. É preciso a distância para percebermos bem, para lermos bem, para sentirmos ainda melhor.
É por isso que nestes dias de luz intensa, a construção que somos ilumina-se até ao fundo desses lugares felizes, e tudo parece voltar com a nitidez que têm as coisas que já se viveram.
E nós, esta construção de passado e futuro, podemos então ser um presente que rememora e, dentro dele, podemos aprender o mundo e a magia de estarmos nele. Podemos construir o presente e o futuro, porque estão lá todos os materiais necessários.
A construção que somos segue um caminho de regresso constante, e as coisas felizes são desta luz intensa como se o verão nunca terminasse, nem mesmo nos dias mais sombrios.
Se tivermos noção da construção, temos noção do caminho, e até de um certo futuro que se inscreve na pele que somos hoje.