Podia aqui citar muitos outros textos do mesmo teor, alguns de abalizados letrados que durante séculos procuraram ver no ser feminino a origem dos males da nação. Nenhum deles se lembrou de lhes imputar o problema demográfico, isto porque na altura não existia, já que se gastavam, queriam mandar na vida familiar e pública, pelo menos faziam filhos e eram devotas. Aliás, quando começam a ter o desplante de entrar na vida intelectual, foram muitos, como o filósofo e biólogo Herbert Spencer, o neurologista alemão Paul Julius Möbius, Charles Darwin, Henry Maudsley, Miguel Bombarda, etc., que considerando a anatomia feminina e o seu estado de evolução inferior relativamente ao homem, defenderam que carregar demasiado o seu cérebro acabaria por produzir uma forte reação física e, eventualmente, o enfraquecimento da sua capacidade reprodutora.
Foi preciso chegarmos à Madeira do século XXI, em plena Assembleia Legislativa, para ouvir um deputado do PPD-PSD chegar à aplicação da teoria de que a mulher é culpada de tudo, responsabilizando-a pelo gravíssimo problema demográfico que a Região vive. Se 17.000 pessoas abandonaram a Madeira e os jovens, os que fazem a diferença em termos de aumento de natalidade, decidem que não conseguem ter respostas para as suas expectativas de emprego bem remunerado, habitação condigna e poder de compra igual ao do resto do país, se o Norte da Ilha se despovoa, a culpa é dessa mulher que durante anos lutou pela emancipação e esquece a devoção religiosa, não incutindo, assim, à família e à sociedade os santos e pátrios preceitos da reprodução. Já tinha ouvido a sugestão por parte de um membro do governo a uma deputada para começar ela a lutar contra a queda demográfica - indo para casa e dando o exemplo.
É fácil cair no discurso infeliz de respostas corriqueiras que alimentam os cidadãos misóginos e a religiosidade beata e fundamentalista, tão diferente da verdadeira, a respeitadora e livre. Corriqueiras e desesperadas.
Que governação progressista tem vindo a fazer o partido do senhor deputado-teórico do século XVIII? Uma governação que responda a desafios e que não se limite à gestão do que vai acontecendo? Pois. O que se quer é desviar o olhar do cerne do problema demográfico e que nos coloca como a região do país que mais pessoas perdeu, apesar do fluxo de migrantes da Venezuela, que não chegou para equilibrar a balança. Porque, em vez de gerir ondas, o governo devia prever, qualificar a estrutura produtiva. Faz-se bem a comparação: em vez de gerir uma casa dia-a-dia, pensar nela daqui a vinte anos, garantindo o sucesso e a oportunidade a todos os seus membros. Investir com diferença, com criatividade, criar hipóteses de aumentar o dinheiro no estado e no bolso das pessoas. A diferença é de fundo, não é pequena e exige coragem e imaginação. Porque pedir dinheiro é fácil, o difícil é fazê-lo. E os jovens partem para onde é possível construir vida: e é por isso que toda uma geração como a da minha se habitua a ver partir os filhos para só regressarem nas férias. Lá fora e no resto do país está um mundo de oportunidades que é igual para todos e favorece quem trabalha. E aqui? Aqui culpa-se a emancipação feminina e o não cumprimento do papel "religioso" da mulher de dar filhos aos homens.