MADEIRA Meteorologia

Artigo de Opinião

silviamariamata@gmail.com

22/09/2024 07:00

Naquele tempo, durante o verão, vinham, às vezes, os embarcados da América passar umas boas férias com a gente. Eu já os tinha visto antes nos noivos da tia Vera, era eu então muito pequena, e mais os conhecia por eu também, meu pai, minha mãe e minha irmã termos sido embarcados na América.

Eles eram três, a prima pequenita, pouco mais nova do que eu, o tio L. e a tia que era irmã de meu pai. Desde que me lembro, sempre admirei a tia embarcada na América. Ela apresentava-se e apresenta-se ainda muito cheirosa, muito fresca, com roupas bonitas e modernas. Nos lábios, vislumbra-se sempre a tonalidade de um discreto batom e nas mãos tão finas e tão bem tratadas, sobressai o verniz cor-de-rosa clarinho nas unhas mais ou menos curtas e encanudadas. Tudo muito simples, mas muito harmonioso. Hoje, há unhas excessivamente compridas que eu não sei quem pode se governar com aquilo nas mãos. Até as pequenas da escola também avezaram em as ter assim, grandes e bicudas, pintadas e mesmo postiças. Nem sei como conseguem escrever. Quem se atrevia no meu tempo àquilo!? Cá nada! Lembro-me da professora Arménia Lopes nos ter dado uma lição sobre o mal que a tinta do verniz nos faria às unhas se as pintássemos. Mas de verdade, gosto de apreciar aquela arte tão excêntrica e vaidosa. Acho-lhe graça e encanto, porém, comigo, nem sequer o mais leve cheirinho daquela arte se vale a pena, é dinheiro perdido, pois enquanto não rapar o verniz, não descanso e enquanto não puser as unhas à minha medida, não sossego. São coisas! Cada um tem as suas! Nunca houve nada desses exageros nas unhas da tia da América nem no rosto tão pacífico de falas mansas e calmas com palavras de paz. E eu gosto assim.

Minha mãe sempre disse que eu dava um ligeiro doaire às tias do Palheiro Ferreiro, o que inclui a tia da América, baixinha e socadinha; mas de rosto e de procederes, dizia minha mãe, saía às Soisas, arisca e etc, e mais não digo para não arranjar sarilhos.

Pois olha, com esta idade, já não sei o que diga. O que se passa é que me deu na cabeça em mandar fazer um fato de cima abaixo de uma cor garrida! O meu juízo! Comprei umas sandálias douradas, pintei as unhas dos pés, porque essas eu não vou roer, e lá vou eu pela porta fora à minha vida. Antes de sair, olhei-me ao espelho. Mas que coisa! Tirando a cor berrante, a figura que me olhava de lá para cá parecia-me a da tia da América, bemposta, risonha e vaidosa na sua simplicidade! Isto, de verdade, com a idade, o que a gente vai buscar!

Pior foi de regresso a casa, quando parei a minha viatura no canto da estrada de São João de Latrão para falar com minha prima. Ela sempre a olhar para mim, com qualquer coisa de espantado! Eu, na ocasião não atremei, mas quando cheguei a casa, fez-se luz! Pudera! A nossa querida tia Isabelinha tinha morrido há uma semana com quase 100 anos, e eu naqueles trajes! Como não me lembrei? Se minha mãe fosse viva, não me deixava caminhar de casa assim. Meu pai também não, ele que durante uma eternidade não nos deixou escarreirar no terreiro, porque a sua querida tia Eugeninha, irmã de minha avó, tinha morrido há não sei quantos meses e era uma vergonha aquela folia de alegria na nossa casinha. Ainda não era tempo de aliviar o luto, não senhores! Agora, o que não diriam aqueles dois, se soubessem que eu tinha ido de vermelho pela porta fora, com a tia Isabelinha ainda quente debaixo da terra?! Nem quero pensar! Decerto também minha prima, por estas horas, já gravou no seu caderninho de memórias esta minha tonta avaria!

No fim, feitas bem as contas tintim por tintim, o melhor mesmo é eu tomar juízo, deixar a tia da América quieta no seu canto e retomar solenemente o meu luto...

OPINIÃO EM DESTAQUE
Coordenadora do Centro de Estudos de Bioética – Pólo Madeira
19/12/2024 08:00

O final de cada ano traz consigo um momento único de reflexão, um convite à pausa no tumulto dos dias para revisitar memórias recentes, reconhecer as dádivas...

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