«Nam tua res agitur, paries cum proximus ardet»Horácio (65-8 A.C.)
Não sabemos quão popular era, no século I A.C., a expressão do poeta romano que abre hoje esta coluna, mas todos reconhecemos a sabedoria do aviso. Numa tradução livre, significa algo como «a tua casa também está em perigo quando a arde a parede do vizinho».
Na Península Ibérica, numa altura em que uma barba farta e cuidada era muitas vezes sinónimo de prestígio e autoridade, popularizou-se numa fórmula semelhante, «Quando vires as barbas do teu vizinho a queimar, põe as tuas a demolhar», que chegou aos nossos dias na fórmula curta de «pôr as barbas de molho» numa imagem que parece não ter contagiado o resto da Europa.
Na verdade, há uma exceção curiosa: pelo menos até ao final do século XIX existia ainda entre as comunidades judaico-espanholas (e portuguesas) do centro e oriente europeus, nomeadamente de Budapeste e Constantinopla/Istanbul. Estas comunidades sefarditas eram descendentes dos judeus expulsos da Península, primeiro pela Coroa Espanhola dos Reis Católicos em 1492 e, quatro anos mais tarde, também pelo édito de D. Manuel I, que expulsou ou condenou à conversão forçada todos os judeus e muçulmanos, pondo fim a uma longa tradição anterior de tolerância religiosa.
Esses ventos sopram de novo.
Esta semana, o partido de direita radical, Vox, rompeu os acordos de governo com o Partido Popular em cinco comunidades autonómicas: Valência, Aração, Múrcia, Extremadura e Castela-Leão (embora nestes dois últimos, um e três conselheiros do Vox, respetivamente, tenham desobedecido ao seu presidente e mantiveram-se nos governos regionais.
Estranhei, confesso. Ainda a meio desta semana, as comunidades valencianas tinham aprovado uma nova “Lei da Concórdia”, que condena os atos de violência política desde 1931, para incluir a instauração da República, deixando de fora o absolutismo monárquico, e eventuais vítimas da Frente Popular (nunca confirmadas), mas deixa de fora qualquer condenação ao Franquismo, reduz o uso do valenciano como língua oficial e revoga compensações à vítimas do fascismo Espanhol, entre sorrisos cúmplices, abraços e juras de amor eterno...
Ao ler a notícia, pensei que houvesse razões graves, por exemplo uma operação surpresa da “Fiscalia” (o equivalente do nosso Ministério Público) ou mais suspeitas de corrupção nesses governos.
Mas não. A culpa será de 347 “menas” (o acrónimo para “menores estrangeiros não acompanhados”), indocumentados, requerentes de asilo ou em situação de especial vulnerabilidade, dos cerca de 3000 que chegaram no último ano a Canárias, Ceuta e Melilla. Ou melhor, dos 209 aceites voluntariamente pelas comunidades governadas pelo PP, menos nas regiões em que há coligação, e muito menos do que a lei prescreve. Se quiséssemos transpor para Portugal, seria o equivalente a 85 menores, dois dos quais para a Madeira.
A verdade é que a direita radical nunca se preocupa com as pessoas mais frágeis, independentemente da idade. São instrumentais, bodes expiatórios para as desigualdades sociais e demais desgraças.
Envergonha-me que haja quem faça isto e na mesma frase diga defender valores Cristãos. Que variante de humanismo cristão é esta? Onde está a dignidade da pessoa humana que proclamam?
Os ventos sopram e bem perto.
Por cá, ontem, o partido irmão deste, pela voz de um eleito na Madeira, ensaiou um discurso em tudo semelhante, de desumanização, de trabalho sem direitos, de expulsão.
Cuidado, que eles andam aí e são o suporte do Governo Regional.
Como diriam os nossos vizinhos: «Quien vee las barbas del vecino quemar, echa las suyas à remojar».