Há dois anos, a propósito do Caminho de Santiago que fiz, escrevi: «Caminhamos pelos dias com a força da firmeza, olhar nos objectivos traçados, prontos a ultrapassar escolhos que nos vão surpreendendo, coleccionando conquistas, aprendendo com as quedas e falhas, apoiados nas mãos que se nos estendem, ignorando as vozes que tentam desanimar, resistindo à tentação da desistência, fixados nas metas que pretendemos atingir...»
Fui de novo.
Sim, repeti gestos, senti a mesma força impulsionadora, calcorreei pisos os mais diversos, alcancei subidas, resisti às descidas, abençoei os sticks ou bastões que me protegiam, garantindo-me segurança, equilíbrio e estabilidade, sorvi o ar que me queimava os pulmões nas subidas, humedeci a boca na água carregada na mochila, reganhei energia em frutos frescos ou secos, protegi-me da chuva quase constante com o poncho que me conservava a roupa em condições de caminhada...
Sim, fiz de novo a caminhada de seis etapas, mas desta vez, o Caminho Inglês, que apresenta de extensão cerca de 120 quilómetros.
Partindo de Ferrol, na Galiza, fomos descendo pela Corunha, passando por Neda, Pontedeume, Betanzos, Hospital de Bruma, Sigueiro e Santiago.
Éramos cinco.
Devo dizer que, para além de ser o menos jovem (de idade, porque de espírito éramos da mesma igualha), era o menos preparado fisicamente. Levei algumas mazelas musculares que me obrigaram a reduzir alguns troços. Ainda ando às voltas com elas, mas estão quase limpas.
Ajuda imprescindível, e que deve estar presente em qualquer caminhada deste género, foi a interajuda, a solidária composição do grupo peregrinante.
Para concluir a descrição desta aventura por terras da Galiza, devo dizer que preferi fazer o Caminho Português, em maio de 2022, desde Valença a Santiago.
O Caminho inglês, em tempos o mais frequentado, hoje é um caminho de poucos caminhantes. Percursos houve em que só íamos os cinco.
O arranque em Ferrol é suave, porém logo começa em zona industrial, pouco motivadora. Há vistas assombrosas, mas quando, a partir da segunda etapa, a chuva foi companheira constante, com as neblinas e nevoeiros, a paisagem desapareceu. Contudo, há percursos fantásticos, com as árvores vestidas de outono, os bosques misteriosos, de que sobressai o «bosque encantado», enfim, percursos que só valorizam e amenizam a caminhada.
A chegada a Santiago, à praça da catedral, mesmo a chuviscar, foi de novo altamente emocionante, de lágrimas incontidas, abraços longos e olhos molhados, gritos a encher o peito, manifestando a alegria de chegar!
Objetivo alcançado!
Mas, porque peregrinamos?
Peregrinar pode dizer um dicionário ou enciclopédia que é deslocar-se, geralmente em grupo, por devoção ou promessa, movido pela fé a um lugar santo ou santuário.
Hoje, pelo menos neste Caminho de Santiago, os principais motivos nem serão religiosos, ou de fé.
Para já, está na moda. É um pouco experienciar aquilo que amigos e literatura diversa sobre o tema vão contando.
É desafio às capacidades, aprendizagem de redução do supérfluo, verificação dos limites de sofrimento, auto-reflexão, despojamento, distanciamento das coisas e das pessoas, tomadas de opções de conduta...
Para mim, foi sobretudo uma oportunidade de estar muito tempo comigo. Há muito silêncio que nos enche!
Então, representou-se-me a vida, recordei a pegada escrita em cada dia, as pessoas que, de algum jeito, me marcaram, as opções que tomei, perdoei-me por atitudes, ações e omissões...
Acompanharam-me as pessoas que deixei fragilizadas, e que sempre estão comigo. Muitas vezes, foi essa recordação que me fortificou e energizou.
Acolhi a bênção de voltar mais capacitado para enfrentar os desafios que a vida me coloca, na convicção de que é com esforço, confiança e resiliência que a vida se constrói!