Naquela palestra estava alguém com uma postura nova, pelo menos para nós. Era uma rapariga com bom aspeto, pouco mais velha que a maioria da audiência que se apresentava como sendo "toxicodependente em intervalo", ao estilo dos Alcoólicos Anónimos. O que mais nos surpreendeu foi a franqueza com que começou:
«Toda a gente aqui ouviu dizer que as drogas são más, mas não é bem assim. São boas, por isso há tanta gente que gosta e quer repetir. Ou melhor, parecem boas porque têm um problema muito grave: As drogas "agarram" e é muito difícil parar». A partir daquele momento eramos nós que estávamos agarrados. Acrescentava então «Não se enganem, por muito boas que sejam, fazem mal, muito mal».
Talvez seja melhor contextualizar. Na altura a abordagem à questão do consumo de drogas dirigida aos adolescentes nas escolas era quase exclusivamente proibicionista, diabolizadora, aterradora até. Passava por dizer que as drogas eram terríveis e matavam. Por vezes os discursos eram um pouco mais elaborados, mas não menos assustadores: «as "overdoses" de heroína matam; os heroinómanos começam quase sempre pelas drogas leves; não fumes senão vais "ser drogado" e morres».
Claro que este é um raciocínio falacioso (falácia da "Bola-de-Neve" ou "Slippery Slope"). Boa parte de nós conhecia gente que fumava apenas tabaco, gente que usava drogas leves e não entrava nas duras, e mesmo gente que usava drogas duras e se aguentava há algum tempo. Como a conclusão (fatal) acabava por ser longe de universal, o medo desvanecia-se e uma vez ultrapassado tinha o efeito contrário.
Foi por isso refrescante quando aquela jovem, de bom aspeto e boas famílias, partilhou connosco parte da sua história, algumas das suas experiências e não se escusou a responder às nossas perguntas. Explicou. Não romantizou. Não diabolizou. Não nos infantilizou.
Foi nessa altura que me convenci de que o consumo de drogas devia ser despenalizado. Um adicto não precisa de prisão, precisa de tratamento. E antes precisa de querer ser tratado. Depois precisa de um plano, de um projeto de vida. De nada serve tratar a adicção e desintoxicar se não houver um plano de (re)integração na sociedade, de fortalecimento da personalidade para a tornar mais resiliente, mais determinada, mais projetada para o futuro.
A ênfase, por vezes excessiva, sobre a proibição do primeiro contacto cria condições para agravar o comportamento, num exemplo prático da teoria da rotulagem de Howard Becker. Alguém que "quebra o selo higiénico" e fuma um "charro" e é rotulado como "drogado" rapidamente passa a assumir essa mesma característica como parte da sua identidade.
Mas principalmente de nada serve proibir a entrada a quem já atravessou a porta. Para esses a estratégia tem de ser diferente. Temos de facilitar a saída de quem quer sair e ajudar a sua reintegração ativamente. Finalmente precisamos também de apresentar algumas estratégias de segurança no consumo para quem ainda não chegou a esse ponto. Para lhes dar tempo para reencontrarem a esperança.
José Júlio Curado escreve
ao sábado, de 4 em 4 semanas
zecurado@yahoo.com