A pergunta a fazer, aqui, é quem decide, ou quem escolhe considerar, que uma determinada narrativa é desinformação. Eu, por exemplo, considero estar a ser vítima de desinformação quando os governantes insistem em deslocar responsabilidades políticas pelas suas acções executivas para terceiros (o governo anterior, os mauzões de determinada classe social — seja lá o que isso for —, os irresponsáveis que celebraram o Natal, etc.). Outros defenderão que estou a exagerar, que estou a ser tendencioso, ou mesmo que a minha opinião não lhes interessa de todo. Qualquer uma destas opiniões é tão válida quanto subjectiva (incluíndo a minha). Também subjectiva será, sempre e sem excepção, a opinião do fiscal escolhido (por quem?...) para determinar o que é desinformação ou a mais absoluta das verdades.
Não será difícil, à partida, conceder que o artigo em questão está coberto de boas intenções — além de um condescendente paternalismo para com os indivíduos que compõem a sociedade. Também houve quem acreditasse nas boas intenções da censura na IIª República, o que até pode ter sido verdade até certo ponto. O problema está na porta que se abre a quem tem más intenções.
Imagine o leitor que abomina o discurso de um determinado líder político, como, por exemplo, o terceiro mais votado para as últimas eleições presidenciais — e que se absteve na votação desta lei. Imagine que este líder político consegue convencer mais gente ainda das suas boas intenções para o país, e ganha as próximas legislativas. Esta porta agora aberta, por mais inconspícua seja a abertura, estará lá para ele. O mecanismo legal, potencial instrumento de censura, estará à disposição do líder político que este leitor abomina. Confia, o leitor, nas intenções fiscalizadoras da desinformação deste político? E o leitor que, confiando neste político, abomina os do outro lado do espectro político; confia na sentença destes na configuração do que é narrativa de desinformação?
Dar ao Estado uma arma potencialmente nociva e cerceadora da liberdade, é dar, eventualmente, uma arma potencialmente nociva e cerceadora da liberdade a um governante no qual o leitor não confia. E esta é apenas mais uma a somar a outras já em vigor.
É bastante confortável, não nego, ter montada uma cerca de regras pré-definidas, feitas cumprir por terceiros, de forma a que não tenhamos que usar o nosso sentido crítico. No fundo, é muito mais agradável não ter essa responsabilidade. O problema é que, abdicando da responsabilidade de nós próprios, também abdicamos da liberdade, já que um não existe sem o outro.
É até nocivo entregar a protecção da mentira a terceiros. O indivíduo não será capaz de distinguir, no futuro, uma mentira descarada (“não há fome no país”, por exemplo) da verdade que o próprio observa (“eu tenho fome”).
Não quero, com isto tudo, defender que não se pode confiar em ninguém; antes pelo contrário. Um indivíduo que não confie noutro, mesmo que apenas um, é um indivíduo pouco saudável — provavelmente, até pouco confiável. Do que devemos desconfiar, sempre, é do poder abstracto, sem mérito que de nós próprios emane.