Num mundo ideal, cada um de nós saberia reconhecer e respeitaria os limites dos seus comportamentos e escolhas. Uma utopia improvável, porque da nossa matriz fazem parte a maldade, o gosto pela prevaricação e o apelo para fazer o que nos apetece, mesmo quando tal possa trazer malefício ao próprio ou ao outro, seja ele humano, animal ou natureza.
E porque assim é, para assegurar um funcionamento das sociedades, tão harmonioso quanto possível, houve, desde sempre, a necessidade de estabelecer regras e, concomitantemente, criar entidades fiscalizadoras do seu cumprimento. E quando os olhos dos fiscais humanos falhavam, sempre presente estava a omnisciência de Deus que tudo via e punia, se não na vida terrena, no fogo eterno dos infernos. Hoje, menos confiantes na eficácia da omnipresença divina, recorremos à videovigilância para auxiliar aqueles em quem delegamos pugnar pela ordem, entre eles, a Polícia. Este corpo tem a função de orientar, informar, fiscalizar e, apoiado no poder judicial, afastar do convívio social quem possa ameaçar a segurança global. Infelizmente, sabemos que essas atribuições são, por vezes, exacerbadas e postas ao serviço de ideologias e poderes políticos ou religiosos. Exemplos não faltam pelo mundo fora e não vai longe a época em que, em Portugal, muitos sofreram às mãos da PIDE. Acabou e não queremos o retorno.
Depois do 25 de abril, a forma como a sociedade portuguesa vê a Polícia alterou-se e a própria instituição se implica em sessões para que todos se familiarizem e confiem na proteção que os agentes lhes podem garantir. Uma estratégia para passar do antagonismo e temor para a proximidade e confiança. Um jogo de equilíbrio entre liberdade e segurança só possível com respeito. E é aqui que parecemos estar a resvalar para o perigo, por um lado, com alguns excessos de policiais sobre cidadãos e, por outro, com um muito preocupante aumento de manifestações de ódio de cidadãos sobre agentes da autoridade que vão sendo desvalorizados e encarados com ligeireza.
Tudo isto pensei ao ver a publicidade a um modelo de automóvel, baseada no diálogo entre um polícia e um jovem ao volante da sua viatura. À ordem do oficial, o condutor para e, conforme solicitado, entrega-lhe os documentos. À questão: "este carro é seu?", o esfuziante condutor responde: "É! É uma beleza, mas não pode comprá-lo". Arrebata os documentos da mão do policial, deixando-o estupefacto e sem reação, e arranca, ligeiro. Uma atitude que, ainda que encarada como impulso de irreverência juvenil, não deixa, contudo, de evidenciar desrespeito pela autoridade. Um desrespeito que vai grassando também para com outros grupos profissionais, sociais, familiares, idosos, etc.
Vivemos dias de alguma agressividade na expressão de vontades próprias. A sua banalização faz com que nos habituemos e, se o nível dos abusos vai crescendo, a contrapô-lo, aumentam as regras que aceitamos como necessárias, ainda que nos restrinjam liberdades, depois difíceis de reconquistar.
Quão complicado é manter o equilíbrio entre repressão e permissividade! Pensei, e logo me ocorreu uma frase de A História de uma Serva, de Margaret Atwood, com a qual a narradora procura explicar como chegaram ao sistema totalitário em que vivem: "Éramos uma sociedade a morrer por haver excesso de liberdade." Fica a reflexão.