Nunca mais tinha lido José Régio, mas, este verão, sem o procurar, o seu Fado veio ter comigo. E trouxe-me a memória do calor alentejano de outros tempos, de um cheiro a feno e a secura de que já me tinha esquecido: "Lá vem o vento soão!, / que enche o sono de pavores,/ faz febre, esfarela os ossos/…" Trouxe-me, a mim, que sou ilhoa e que vivo com o mar ao pé da porta, a aprendizagem do silêncio das planícies: "Alentejo, ai solidão/(…)/ Convento do céu aberto!/ Nos teus claustros me fiz monge". Trouxe-me o silêncio dos versos nus.
Há livros que nos trazem a crueza da vida: este, por exemplo que nos canta o fado - o dos pobres, o das ruas sem sol, o das mulheres de vida fácil, o do amor sem nome, o dos ferros, o nosso, "Guitarra, vem assistir-me,/ Que a gente é bruto e não sabe".
Deixo-me levar pelo poeta. Quem me conhece, sabe que isso me acontece às vezes. A poesia funciona como os cheiros, exatamente como a madeleine de Proust: faz-me embarcar em caravelas à procura do que já não é, à procura do tempo perdido ou, pelo contrário, à descoberta do que pode vir a ser. Afinal, e regresso a Régio, o que se casou com o Alentejo e escolheu Portalegre (ou terá sido Portalegre a escolhê-lo a ele?): "Medito o meu fado estranho: /Canto, e sei lá porque canto?/Canto, porque nada tenho/
Melhor que o dom de cantar".
Deixo-lhe, pois, esta nota. Foi José Régio que, hoje, nos veio fazer companhia.
*Régio, José, Fado, Guimarães, 2020 (1941).