Ele foi o peditório para que um português fosse deportado por acusar o recentemente falecido Marcelino da Mata de ser um criminoso de guerra, um traidor, uma vez que era negro — fosse ele branco, a questão não se punha. Ele foi uma carta aberta assinada por várias personalidades sem juízo, como a jovem que pontifica na direcção no Museu do Aljube, apesar de ter declarado não saber sequer o que é um Gulag, e um tal de tenente-coronel Vasco Lourenço, que afinal se declara capitão... "de Abril". Carta aberta essa que defendia mais mansidão e respeitinho pelo governo por parte dos jornalistas, que a Ministra da Saúde afinal tem razão e essa corja deve ser mantida em cercas bem apertadas. Talvez até lhas pintem, bem trancadas, com lápis de cor azul. Num momento em que está na moda declararmo-nos intolerantes ao glúten, há quem se declare intolerante ao debate livre.
O problema é que, penso eu e alguns tipos muito mais inteligentes, não se combate a intolerância com intolerância, que é o que, na minha opinião, se pretende com aquela petição. Combate-se a intolerância com argumentos e exposição da hipocrisia comum entre os intolerantes. Neste ponto é costume aparecer, como se dum genial golpe de argumentação se tratasse, o paradoxo da tolerância enunciado por Karl Popper:
"A tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo aos intolerantes, e se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intolerância, então, os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles.?"
Ora, o uso desta arma argumentativa peca por curta. Karl Popper não pára por ali. Logo a seguir, o filósofo escreve: "Nessa formulação, não insinuo, por exemplo, que devamos sempre suprimir a expressão de filosofias intolerantes; desde que possamos combatê-las com argumentos racionais e mantê-las em xeque frente à opinião pública, suprimi-las seria, certamente, imprudente."
Apenas quando os intolerantes se recusam a debater e não se coíbem de apelar à força para impor a sua razão, Popper admite que se use da força em resposta.
O que Mamadou Ba diz é, regra geral, tonto e vezes demais intelectualmente desonesto. O que ele disse, pública e recentemente, sobre Marcelino da Mata aquando da sua morte, roça o abjecto; por várias ordens de razão. Estivesse ele a mim associado de alguma forma, repudiá-lo-ia sem reservas. Como não tenho nenhuma relação com ele, limito-me a reservar-me ao direito de o ter por um pulha. E tenho a certeza absoluta, até pela boca do próprio, que ele não defenderá tolerar o discurso dos seus contrapartes ideológicos. Repudiá-lo e rebatê-lo basta. Mais do que isso — deportá-lo, apesar da nacionalidade portuguesa, para o calar — é contrário à liberdade. Liberdade inclui a ofensa, que podemos não tolerar a nível pessoal, mas não podemos tolher apenas porque nos ofende. Defender a liberdade e a tolerância daqueles que dizem aquilo que nos agrada, ou não nos ofende, é fácil. Difícil é defender a liberdade de quem nos ofende; por isso mesmo o devemos fazer, mesmo que tenhamos a certeza de que aquele cuja liberdade defendemos não fará o mesmo uma vez os papéis invertidos.