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Artigo de Opinião

16/10/2021 08:01

Na verdade, nada é tão revelador do âmago das pessoas e do nível civilizacional de uma sociedade como as atitudes no trânsito. A experiência diária revela que o mais cordato dos cidadãos parece sofrer uma transformação abrupta nos contornos da sua personalidade assim que liga a ignição, transformando-se num libertino e perigoso selvagem. Conduz-se empiricamente e por instinto, esquecendo que existem normas que regulam o exercício desta actividade arriscada, as quais, quanto parece, só são relevantes nos dias dos exames para ganhar a licença ou na eventualidade de um acidente. Incontáveis exemplos se poderiam dar da condução temerária, negligente e incumpridora. Ele é o carro que não tem pisca-pisca ou tem-no, não como sinal indicador, mas em cima da manobra; o embaraço desconhecedor na entrada e circulação na moda das rotundas, algumas de recorte caricato, criadas como circuitos para maior fluidez do trânsito e que redundam no seu entorpecimento, ainda que estranhamente não haja movimento; a condução destemida e as entradas intempestivas nas vias rápidas; o estacionamento abusivo e em segunda fila; o desrespeito pelas passadeiras; o circular apressado de olho no semáforo reservado aos peões; o inadiável telemóvel ao ouvido como se se tratassem de agentes de socorro de prevenção; a buzina como protesto ou provocação, etc. E é neste universo que se libertam, no tal fulano aparentemente cordato, as verdadeiras pulsões da sua personalidade reprimida, o seu pendor emotivo e selvagem, dando lugar às tiradas de calão; ao insulto à mãe ou à mulher; à ameaça verbal e até à agressão física; à amolgadela e até ao atropelamento com fuga, etc. Sem esquecer a desfaçatez do cagão que presume que a cilindrada ou a notoriedade lhe granjeia inimputabilidade ou precedência; o abusador rasca que se acha um ás do volante na má formação que traz de casa; a impaciência e a intolerância que nada mais é, por vezes, que um rancor invejoso pelo glamour do bólide alheio; a sensação audaciosa de liberdade, como se a condução fosse um acto solitário indiferente aos demais intervenientes; o orgulho na impunidade da transgressão não topada pelas autoridades, encaradas não como um elemento de segurança e apoio, mas como agente castigador de que se tem medo, potenciado por algum abuso de poder arrogante. E de permeio a esta atitude irresponsável e atrevida, persistem os tontos ao volante, que ainda são a maioria, felizmente. Os que não esqueceram as regras do código da estrada e as procuram cumprir, a quem não falta um gesto de cortesia e complacência. Os que menos vigiam os passos da fiscalização e controle e a quem falta a matreirice dos campeões da estrada. Os que, por ironia do destino, são as vítimas mais à mão da punição por um pequeno esquecimento ou deslize.

Fruto destas idiossincrasias da personalidade na estrada morreram em Portugal, em 2020, entre culpados e inocentes, mais de 300 pessoas, incluindo 8 na Madeira. O que constitui um sinal preocupante de uma faceta algo embrutecida do nosso grau civilizacional, longe da desejada e cumpridora convivência.

Na inconsequência das campanhas de prevenção, dos bancos da escola e do chá da família, parece que o problema só terá solução quando a engenharia mecânica construir modelos que se conduzam a si próprios, porque a máquina ditosamente não tem personalidade, nem auto-estima, nem emoções.

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