Preocupada com a realidade do mundo, do país e da ilha, refugio-me em assuntos que nos tragam alguma serenidade. Por isso, e ainda no embalo do toque dos sinos, tema da crónica anterior, pus-me a pensar em outros sons que fazem parte do nosso dia-a-dia.
E, como gosto de arrumar memórias, logo recordei sonoridades do passado que atualmente já não ouço: a flauta do amola-tesouras; o pregão do pesquito que, de selha à cabeça, cheiinha de peixe fresco, percorria a minha rua; o som de chocalho e do balir das últimas ovelhas que pastavam nos campos perto do sítio onde vivia, hoje completamente emudecidos com o betão das casas. Nas tardes de estio, quando o sol descia por detrás do negrume redondo do pico de São Martinho, o canto das cigarras-macho em busca de parceira casadoira desatinava em estridência pelo ar, insistente e repetitivo.
Da cidade, de quando em vez, subia o apito de um navio. Quando era pequena, diziam-me que os bebés vinham no Vapor do Cabo, e, por isso, eu gostava daquele toque grave e imaginava meninos a serem acolhidos no colo das suas mães, se bem que, quando ia à pontinha, nunca os visse desembarcar. Só via turistas, com roupas coloridas e sandálias e peúgas brancas nos pés, coisa desusada entre nós, e meninos, se os havia, não vinham para ficar. Contudo, ver aqueles bandos descontraídos e ouvir linguajares incompreensíveis era também uma nota de alegria a associar ao silvo dos barcos. Um dia, porém, tudo mudou. Nesse dia, no barco encostado ao molhe, partiam soldados para as colónias de África. Eram muitos e sorriam com um sorriso incompleto. Alguns até gracejavam, porém, os seus olhos permaneciam tristes. O navio, solto das amarras, afastou-se devagar. Eles permaneceram apinhados na amurada, enquanto, em terra, homens que se recusavam a chorar e mulheres em pranto silencioso lhes acenavam com mãos calejadas. Desde então, o gemido rouco de um barco traz-me sempre uma picada de dor.
Quando a escuridão pousava, o canto manso do ribeiro e do coaxar das rãs apaziguavam as noites, por vezes alevantadas pelos gritos dos levadeiros que corriam a abrir e fechar as caixas divisórias, para garantir a passagem da água até ao terreno agrícola pretendido, à hora certa.
Na noite de São Martinho, uivavam búzios à desgarrada em apupos longos, ou curtos, com requebros, ou lineares. Nunca soube como se produzia tais sons. Acho mesmo que nunca tentei, porque o búzio, para mim, servia para encostar ao ouvido e surpreender-me com o respirar sereno das ondas do mar guardado na sua carapaça. Ficava encantada, mesmo sem saber ainda, o que só na ausência da ilha descobri, que o ilhéu, tal como o búzio, para onde quer que vá, carrega sempre no peito o suspiro do mar.
No silêncio escuro da casa, ecoava o tique-taque do relógio de parede e, se afinássemos o ouvido, conseguíamos alinhá-lo com tique-taque, mais subtil, do relógio de pulso. Hoje, já quase não há relógios para ouvir, pois que novas tecnologias os calaram. Confesso que contrario o movimento silenciador e mantenho o velho relógio de parede a badalar, nada menos do que reproduzindo, a cada 15 minutos, o som do Big Ben – um snobe este meu relógio. Dou-lhe corda duas vezes por semana e tenho de lhe acertar o compasso porque ele se atrasa. Detalhe que nada me perturba. Gosto de ouvi-lo. Anda mais lento, sim, e que importa? Também eu, às vezes, gostaria de poder amarrar o tempo para que não passasse tão depressa.