O que se passou na Assembleia da República - com mais uma invetiva do líder do Chega contra grupos minoritários que, de várias formas, contribuem para a nação portuguesa, essa mesma nação que durantes tantos anos, e ainda hoje, é a origem de emigrantes que se espalham por todas as partes do mundo -, a que o presidente da Assembleia, Augusto Santos Silva, pôs termo com um "Sempre que o prestígio da Assembleia da República estiver em causa, pode ter a certeza que intervirei", é apenas uma ponta do iceberg desta semana ou do fogo lento que nos consome. O desrespeito pela Assembleia Legislativa Regional, com o habitual espetáculo de deputados a não deixarem falar a oposição, com bravatas para gáudio do grande líder, é um atentado ao prestígio daquele órgão. Aliás, talvez seja mesmo esse o objetivo, depois de anos de pêpêdismo que esvaziou de importância o lugar onde as ideias deviam ser debatidas. Deviam pedir o relatório dos alunos que visitam as sessões para entender o que o povo que elege pensa do povo eleito e dos chumbos que lhes são atruibuídos.
Depois, há personagens como a Cinha Jardim que, do alto do seu privilégio económico e social construído em tempos salazarentos, disse que o João Félix é feinho, coitadinho. À senhora, essa gentinha do futebol, desporto de pobres que podem ficar milionários a dar pontapés, é como os "pretinhos", coitadinhos também eles. Ralis é que é bom, porque tem gente mais fina e, por isso, bonitinha. Ela sabe que é preciso amar todas as criaturas de Deus. Sabe. Mas, coloca em aparte os imigrantes, os pretos, as mulheres que se armam em inteligentes, os ciganos, os que saem das favelinhas e das fazendas e pisam os palcos do mundo, mais as mulheres que fazem abortos e os que amam pessoas do mesmo sexo, mais os que se opõem a nós, que somos donos do mundo e se não se calarem, falamos por cima, chamamos "mentirosos", "pró-Maduro", "revolucionários", "destruidores de lares", sabendo perfeitamente de que lado está a mentira. Na grande festa do Chão Divino da Lagoa, ainda atiçamos mais o povo, acenamos com a ideia de dar à oposição tratos de polé, porque na oposição são porcos, feios e maus e nós gritamos tão alto na ALRAM que ninguém os consegue ouvir. O povo exalta-se com o cheiro de sangue e a coisa fica mais barata do que com prendas. Eis o pão e circo dos romanos que, assim, faziam alegres os pobres deste universo.
A necessidade de criar um inimigo é algo que é também conatural ao homem moderado e ao amigo da paz: a imagem desloca-se de um objeto humano para uma força natural ou social que é percepcionada como uma ameaça e que deve ser vencida. Explica-o bem Umberto Eco. E é isso que temos de ter em conta: como o ódio e a má educação também influenciam quem à partida parece o vizinho mais simpático. Por isso, é necessário não deixar que o ódio e a má educação rendam apoio e, em último grau, coloquem os verdadeiros "inimigos entre nós" em lugar em que mais nos espezinhem as mentes e as vidas. Porque, citando Eco, "Para ter os povos sob controlo, é necessário inventar inimigos, e pintá-los de modo a que suscitem medo e repugnância."
Os inimigos construídos não são tanto os que realmente nos podem ameaçar, mas os que determinadas pessoas, grupos ou partidos têm interesse em representar como ameaçadores, aparentemente pela sua diversidade, mas, de facto, porque alguém quer que o seu diverso seja visto como sinal de ameaça. A má educação, depois, é pobrezinha, mas tem adeptos nos frustrados, nos que andam à procura de capas vermelhas para perseguir e que só as conseguem ver a elas e não o que rende a quem as abana.