“Vais pagar à língua de palmo”. Nem sempre era fácil a vida na aldeia, desenganem-se. Pequenas divergências davam azo a grandes amuos, a rogar de pragas bélicas e ódios familiares que atravessavam gerações.
Mas na hora do aperto, ninguém deixava ninguém para trás. E havia apertos, oh se havia. Quando a chuva desabava dos céus sem controle e as enxurradas arrastavam tudo pela frente, muros, árvores, barrancos e até as arrelias entre vizinhos.
Eram tempos de guerra em que até os desavindos esqueciam as quezílias e pegavam nas enxadas e pás, noite dentro, para fazer regos e escoar a água. A mesma pela qual se clamava no verão, que viesse pôr fim às chamas que levavam tudo a eito. Não se limpavam armas, que às vezes eram galhos de árvore com que se apagavam os fogos como se podia, enquanto se rezava para dentro, ou mesmo uma mangueira de jardim com que se regava o telhado, com uma mão, enquanto se enxugava as lágrimas com a outra.
A hora da doença também era sagrada. “Na cadeia e nos hospitais é que se veem os amigos” era máxima seguida, como o evangelho ao domingo. Tudo o resto ficava para trás. “O que interessa é ficar bom, as suas melhoras”.
Deitava-se a mão a quem precisava. E não havia cobranças, porque uma mão acabava sempre por lavar a outra. Ajudava-se a regar e meses depois viria fruta ou legumes ou o que a terra desse. Não era apenas economia de partilha, era um modo de vida, à prova do que viesse. Não se conheciam as palavras resiliência ou empatia, apesar de, na hora da verdade, sempre prática corrente.
Às vezes era difícil a vida na aldeia. A maledicência rasteira que se transformava em arbustos de rancor e corriola de desentendimentos. Mas havia um princípio basilar de comunidade, uma força que se sobrepunha à mesquinhez das coisas sem importância. O choro no luto, a partilha nas festas.
Nos dias estranhos da vida insólita que vivemos, não sei que saudade esta que carrego em mim. Se do tempo, se do lugar.