No Dia Internacional da Mulher, em 8 de Março, a cantora Capicua lançou a sua versão da conhecida canção de Sérgio Godinho, intitulando-a Que força é essa, amiga? A letra foi também adaptada: «Vi-te a trabalhar o dia inteiro/ A limpar a cidade dos homens/ Por amor ou por pouco dinheiro/ Ficam velhas as tuas mãos jovens.» O PÚBLICO havia dedicado a sua edição de 5 de Março, que celebrou os seus 34 anos, a «ser mulher em liberdade» e a todos os desafios de igualdade que ainda persistem, convidando Maria Teresa Horta a ser directora por um dia. No seu artigo dessa edição, Ana Sá Lopes faz várias referências à operária Luísa do poema de António Gedeão, Calçada de Carriche. Fui reler o poema, e exorto-vos a fazer o mesmo. Provoca calafrios: «[...] Passam magalas,/ rapaziada,/ palpam-lhe as coxas,/ não dá por nada [...]/ Chegou a casa/ não disse nada. [...]/ Pegou na filha,/ deu-lhe a mamada;/ bebeu da sopa/ numa golada;/ lavou a loiça,/ varreu a escada;/ deu jeito à casa/ desarranjada;/ coseu a roupa/ já remendada;/ despiu-se à pressa,/ desinteressada;/ caiu na cama/ de uma assentada;/ chegou o homem,/ viu-a deitada;/ serviu-se dela,/ não deu por nada [...]». A Luísa já não pode ser um parêntesis recto; tem direito a dois pontos e travessão!
No dia 4 de Março, a França tornou-se o primeiro país do mundo a referir expressamente a liberdade de as mulheres recorrerem à interrupção voluntária da gravidez na Constituição, aí exarando esta parte do contrato social sujeita a ataques. A própria presidente da Assembleia Nacional francesa explicou que mudou de opinião relativamente a tal inscrição devido ao precedente estado-unidense. Recorde-se que, nos Estados Unidos, o Supremo Tribunal decidiu contra uma jurisprudência consolidada de cinco décadas que reconhecia um direito constitucional ao aborto. No decorrer da cerimónia francesa, a cantora Catherine Ringer de 66 anos, convidada para cantar a Marselhesa, também adaptou a letra e soltou um «Aux armes, citoyens et citoyennes» (Às armas, cidadãos e cidadãs), «marchons et chantons cette loi pure dans la Constitution» (marchemos e cantemos esta lei pura na Constituição).
Ao abrir a conferência dos 34 anos do PÚBLICO, a escritora Lídia Jorge também falou da Luísa da Calçada de Carriche e de outras mulheres, apesar de não as ter assim designado. Aquela trabalhadora que sai à noite de casa, e à noite retorna. Esperava, contudo, que a filha da trabalhadora – acrescento, hoje, muitas vezes imigrante – já não tivesse de subir a mesma, ou tão íngreme, calçada. A talho de foice, na edição especial que a BBC dedicou à terrível situação em Gaza, víamos as mulheres em Rafah, junto às crianças, a prepararem o pão ázimo. Um forno sem pompa, mas com circunstância tinha sido preparado no chão, e o fogo – fátuo? – era alimentado por galhos e liaça. De repente, passa pela imagem uma joeira. Ainda há vida em Gaza, mas até quando?
Na noite do Festival da Canção, aconteceu um muito bonito tributo ao 25 de Abril que os músicos Filipe Melo – até com o tampo tocou aquele piano – e Samuel Úria propuseram pelas vozes e criatividade de Ana Lua Caiano (o Zeca sabia que pela Primavera nascem flores vermelhas), de Alex D’Alva Teixeira (uma Liberdade negra de Sérgio Godinho), de Luca Argel (a cantar o Chico: não podemos deixar murchar a nossa festa, pá), e de Paulo de Carvalho (que cantou o amor que anunciou a democracia, E Depois do Adeus), sendo todos bem acompanhados por uma orquestra irrequieta, como é preciso, e pela percussão dos Retimbrar. Quando Paulo de Carvalho entrou em palco, o olhar da violinista – e o nosso –, que a imagem reteve, fixou o cantor para saber quando devia começar o pizzicato, ou seja, quando devia começar a tocar com os dedos a Liberdade. Nos 50 do 25, devemos poder dizer, como canta iolanda: «So[mos] chama que ainda arde».