MADEIRA Meteorologia

Artigo de Opinião

CONTOS INSULARADOS

23/06/2024 07:30

Às vezes amuávamos. Era preciso esperar que a labareda estava alta. Os adultos entusiasmavam-se e toca de meter lenha para a fogueira e não havia quem saltasse, mesmo os afoitos sabiam que tinham de aguardar. E, então, ficávamos de “olhinhos a ferir” a mirar o lume, com um misto de impaciência e inebriamento. Grandes e novos, éramos todos meninos à volta da fogueira à espera, inquietos, que as chamas dançassem, rasteiras e que o vento não as ateasse mais, para, por fim, se fazer uma fila e saltar por cima do lume.

Primeiro eram os grandes. Às vezes atiravam-se cedo de mais e o cheiro a pelo chamuscado fazia lembrar a matança do porco no Natal, mas raramente davam parte fraca, sobretudo, se estivessem em idade casadoira a querer impressionar as moças, que esperavam pelo cair da noite para deitar as sortes e, entre risinhos nervosos, pediam ao santo um bom partido para casar e lhes dar vida melhor.

As mulheres casadas riam com as sinas que calhavam às mais novas, talvez lhes invejassem o facto de ainda poderem sonhar com um destino diferente. “Ai se elas soubessem”, diziam sobranceiras e saltavam a fogueira também, enquanto gritavam aos garotos que não, ainda não podiam saltar, que o lume é caso sério e que ninguém queria queimaduras em dias de festa, que o hospital era longe. Tudo era longínquo nesse tempo, embora naqueles dias parecesse que vivíamos no centro do mundo. Tínhamos a sensação que da lua se via a fogueira da nossa aldeia a arder no meio do Atlântico e no fervor da nossa impaciência saltitante e desafiadora.

“Já se pode saltar?”, perguntávamos outra vez. E os pais mandavam perguntar à mãe enquanto brincavam com os rapazes, que se queimassem as partes (não precisavam quais) podiam não ter filhos. Riam-se os adultos, encolhiam os ombros os mais novos sem perceber a correlação. “E vinho com laranjada, podemos beber?”, arriscávamos. Se deixava os maiores tão alegres, mal não deveria fazer. Mas também não tínhamos sorte. Seguia laranjada sem vinho e já era bom. Tinha a cor das labaredas, mas a escorrer fresquinhas pelas nossas gargantas.

Tínhamos pressa de saltar e de crescer. As chamas baixavam por fim, bamboleavam mais contidas na noite que corria lesta para o amanhã da nossa ansiedade. Era a nossa vez de pular sobre as chamas. O mundo cabia ali à roda da fogueira da nossa aldeia, que, acreditávamos, se via da Lua. Era um rito de passagem o pulo a solo, sem ajuda. Mas nesse dia não, não percebíamos ainda. Éramos meninos à volta da fogueira, cheios de sonhos e de verdades e o mundo cabia ali naquelas noites de São João na nossa aldeia que se via do céu.

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