Depois de ter faltado à aula da semana anterior, entrei na sala e vi que quase todos os meus colegas estavam a entregar uma folha ao professor. Perguntei-lhe o que era; explicou-me que tinha feito um pequeno desafio de escrita na aula anterior. Pedi-lhe logo desculpas, que não tinha trazido nada, que não sabia. Ele, com um sorriso tão calmo quanto condescendente, respondeu-me com uma pergunta: "És católico, não és?". Ligeiramente intimidado, acenei que sim. Ele continuou, dizendo que o meu sentimento de culpa estava deslocado, que, por não ter estado presente quando ele lançou o desafio, não tinha que saber. Além disso, a minha obrigação, a minha responsabilidade no que às aulas diz respeito, é para comigo, não com ele, pelo que não era a ele que eu devia desculpas.
Ainda hoje penso nesta conversa que, apesar de bastante leve e descontraída, me marcou de forma indelével, reavaliando a minha atitude para com a alocação da responsabilidade e do sentimento de culpa.
Não quero insinuar, com isto, que a culpa é uma inutilidade. Sentir culpa é uma forma de identificar os nossos próprios limites éticos e morais. Quando sinto culpa é porque ultrapassei alguma linha com que me auto-limito, tanto nas relações com os outros, como em relação às expectativas do indivíduo que me proponho ser.
Sem culpa não há sociedade, é verdade. A culpa anda de mão dada com a empatia e a responsabilidade, e gera complacência. A culpa, em doses certas, é uma das forças que equilibra o indivíduo e a sua saudável inserção na sociedade. Sem culpa faríamos o que nos desse na real gana, sem pensar em consequências.
Hoje em dia, abusando da empatia que a culpa carrega, há quem me queira fazer sentir culpado pelo meu fenótipo, pela cultura em que fui educado e pela geografia em que calhou ter nascido — entre outras coisas que não resultam, de todo, de uma decisão minha.
O meu fenótipo — o meu aspecto físico —, por exemplo, do qual só posso ser responsável na medida do que como, do que me exercito (ou não) e da exposição aos elementos a que me permito, depende, em grande parte, dos genes que me calharam em sorte. Não os escolhi, como não escolhi em que cultura crescer, nem em que ponto neste planeta nascer. Também não sou responsável pelo que fizeram os meus bisavós, que nem conheci. Não sou responsável pelo que fazem, hoje, pessoas de fenótipo parecido com o meu e com quem nunca tive qualquer contacto, noutras partes do mundo. Também tenho a certeza de que as pessoas más deste mundo não têm todas a mesma origem cultural que eu, não se geraram todas do mesmo pool genético que eu, nem nasceram todas na cidade do Funchal — como eu.
O que ficou daquela curta conversa com um dos meus professores favoritos naquele curso, além da consideração religiosa, é o debate interno permanente a que me obrigo de cada vez que um dedo me acusa — incluindo o meu. Tive eu alguma responsabilidade? Fiz eu alguma escolha que àquilo levou?
A ideia com que fico quando esses dedos me acusam de coisas de que não tenho responsabilidade absolutamente nenhuma, mesmo que em abstracto, é a de que estão apenas à procura da intimidação do meu ego para gerar complacência, ou até obediência acrítica. Mas são eles, os acusadores, os verdadeiros geradores de violência, tanto verbal como literal. Eles escolheram esticar o dedo e berrar "lobo".