Tenho da felicidade uma ideia de água. Os momentos mais felizes, as recordações mais nítidas são um trajeto líquido, uma geografia da alma enquanto repositório de uma memória sentimental.

Desde logo, a imagem do meu pai naquela praia de pedra rolada, vestido num território de gente quase nua. O sorriso a espreitar a nossa alegria salgada, os ombros a desparecerem e a aparecerem na ondulação da berma da água.

O meu irmão e a proteção cutânea, na tentativa vã de proteger uma pele muito branca e as sardas que lhe intensificavam um sorriso de catraio que havia de conquistar o mundo às avessas.

Mais tarde, a ida à praia com os amigos, aquela felicidade de ser quase água na liberdade de um mergulho e de uma brincadeira infinita pelas tardes que se espraiavam literalmente numa alegria sem mácula.

As sandes de queijo espremidas pelo desajeitado modo de pegarmos nas coisas, de as transportarmos como quem ainda não sabe o lado certo de manusear os elementos.

E, ainda assim, na nossa inabilidade, sermos hábeis e ágeis como peixes. Os braços como barbatanas com dedos, as guelras, onde verdadeiramente e anatomicamente não existiam, e as escamas que nos faziam brilhar. Sereias e tubarões de uma praia familiar e certa.

Quando se cresce assim com esta alegria à beira mar, é fácil voltar a esse território imune a todas as dores de crescimento e às outras que a vida nos vai atirando. É, de certa forma, fácil mantermo-nos à tona de água e deixar que a única coisa que nos contamina seja essa felicidade primordial.

Acontece com as bicicletas e com a aprendizagem da arte de marear: uma vez aprendidas nunca mais se esquece.

E, chegamos a hoje, quase sem mácula quando nos aproximamos da água, com outras crianças de nós, os filhos dos que nos querem bem, eventualmente os nossos filhos, eventualmente os que se fazem nossos também pela amizade e pelo amor. E, aí, nesse lugar, voltamos a ser crianças. Voltamos a mergulhar e quase que vemos ainda o pai vestido à beira mar e o sorriso pela tarde fora.