A minha mãe convidou-o para se sentar e almoçar, mas ele recusou, explicando que o esperavam em casa e, que além disso, comia cada vez menos. Conversa puxa conversa e já ele lembrava os Domingos de outros tempos em que iam à missa ás 5 da madrugada na Igreja do Colégio, passando antes, na venda do Sr. Pereira, na rua da Carreira que, lhes servia um copo de café com leite e pão com molho. Dois tostões e estava a festa feita e lá seguiam satisfeitos para a celebração. Em seguida, e uma vez que o mercado abria às 6h, iam fazer compras.
Pelo que fui ouvindo contar ao longos dos tempos, a minha avó, que trabalhava a tempo inteiro na cantina da Escola Masculina na rua de Santa Maria, costumava fazer compras para algumas casas. A minha mãe e os meus tios e tias ajudavam nesta tarefa e lembram-se de entrar pelas cozinhas com cestos carregados de hortaliças e até peixe e carne e de serem recebidos pelas empregadas que os mimavam sempre com alguma coisa. Várias vezes ouvi a minha mãe (a mais novita na altura) contar que era levada para a cozinha pela "Senhora" que lhe fritava um ovo que metia numa "joaninha". Os nomes foram, entretanto, esquecidos, mas sempre que passa pelo actual Instituto do Vinho da Madeira, acho que ainda saliva só de se lembrar do pitéu.
O meu tio recordou uma outra "Senhora" cujo marido, inválido, vivia em recolhimento e que, cada vez que ele lá ia, o chamava para a cozinha para lhe dar o restinho das papas que fazia para o marido. Sem saber que papas eram, só disse que lambia as beiças e ansiava sempre por lá voltar. E aproveitando esta deixa, o meu tio lembrou-se de outras casas onde era habitual deixarem as compras e até recordou uma moradia da Rua dos Netos onde residiam umas Gibraltinas, muito simpáticas e tagarelas e que os recebiam sempre bem-dispostas. Certo dia, ofereceram-lhe uns sapatos e lá foi o meu tio todo contente para casa. Assim que ele falou nisto, a minha mãe começou a rir e rematou:
- eram sapatos de senhora!!
E riram-se os dois enquanto eram teletransportados para um tempo cristalizado na memória e que apesar de difícil e por vezes, doloroso, foi, também, um tempo de felicidade inocente e genuína. Saltando de conversa em conversa, já estavam a falar no vendedor de tremoços que passava pela rua aos Domingos e do homem que levava a canastra com atum, espada e cavala (os peixes dos pobres), e do meio tostão com que comprava rebuçados ou amendoins e ainda das vezes em que rapar o casco da panela do milho acabava em briga, já que eram 8 bocas a competir.
Voltaram a rir-se, os manos, comungando instantes de outrora. Aproveitei para sugerir à minha mãe que fizesse milho para o almoço do dia seguinte. De imediato, o meu tio perguntou:
- Gostas de milho?
- Sim gosto e muito, respondi.
Dando uma gargalhada gorda e reluzente acrescentou:
- Mas aposto que nunca comeste milho como eu!
- Como assim, tio? - inquiri.
- Eu já comi milho com nêsperas, com uva jaqué, com tremoços, com açúcar, com leite … e até já comi milho com céu estrelado.
Daqui para a frente e sempre que comer milho, hei-de lembrar-me de um céu estrelado e do tio Armando.