A memória também pode vir com a chuva, com a luz que por estes dias se faz mais difusa, com a noite e o amanhecer a horas distintas do verão que se afasta.
Há qualquer coisa nesta estação de um outro tempo e de um outro lugar. Das janelas que se fechavam para afastar o frio, da chuva persistente, e daquele verde intensificado pela água que lhes entrava pela casa.
Ela recorda-se da barca que ele inventou. A barca que trazia uma mulher e um cão de volta a casa. A barca de um desejo imenso de vida, como se navegar fosse essencial para construir uma felicidade inteira.
A estação começou no verão, mas concretizou-se em pleno no outono e no inverno, tempos mais associados à melancolia do que à alegria, mas, na verdade, eles nunca foram de cumprir clichés, a não ser o particular universal de uma história de amor.
Mas não são assim as histórias? Todas elas. Desde as histórias para adormecer, às histórias que roubam o sono, às outras que devolvem a verdadeira medida humana, assim dos pés à cabeça, passando pelo ritmo do coração que marca os dias.
Ele sabia de histórias, mais do que isso sabia a importância delas e a sua intensa verdade.
Histórias mais verdadeiras do que a verdade porque livres para circularem entre nós e as palavras.
Talvez seja de ficção este tempo em que as linhas da realidade se desvanecem no frio, na chuva e no nevoeiro. Este tempo dentro do qual apenas as nuvens se fazem mais nítidas e presentes. Toda a gente sabe que as nuvens são ótimas construções ficcionais. Mudam de forma, inventam a sua própria forma, e imitam as formas da realidade. Qualquer criança sabe contar histórias a partir das nuvens.
É por isso que hoje a mulher está a olhar as nuvens e a inventar uma outra vida. A inventar que a morte não entrou dentro da casa, que a morte não aconteceu num dia de chuva. A mulher traz o homem de volta ao cadeirão, coloca-lhe cuidadosamente um livro nas mãos, e o lápis de sublinhar. Talvez ligue a música, talvez se sente ao lado dele, talvez continuem felizes dentro da história como dentro da casa.
Quem sabe se esta história não é mais verdadeira do que a vida. Quem sabe se a memória que vem da chuva não seja, afinal, a única verdade.