Se há coisa que é difícil de conciliar são duas vidas. Duas vidas que acontecem, que se alteram, que se pesam de forma diferente nos dias.
Duas vidas que implicam dois pensamentos e dois corações tantas vezes a descompasso.
E, ainda assim, essa melodia desacertada encontra-se a espaços e é possível uma certa música e uma certa poesia. É na dobra de um desconcerto, que a música se torna matéria do mundo e o compasso prossegue o seu andamento.
Que se desafine não é qualidade de uma imperfeição ou de uma impossibilidade, mas a possibilidade de acertarmos as notas em momentos raros. A felicidade é, em grande parte, validada por esses intervalos no que é naturalmente desafinado.
Duas vidas podem acertar a música e desafinar a espaços sem que isso signifique que se falhe a melodia de uma vida comum. Aliás, diria que na falha está toda a beleza e toda a possibilidade de fazer caminho, pauta e música.
Mas, ainda assim, não é fácil pegarmos na melodia e nas suas falhas e conseguirmos não perder o fio à música, sobretudo não perder a capacidade de assentar os dois pés no chão e depois elevarmos o corpo numa dança que encontra um outro corpo e um outro ritmo. Claro que nada disto é simples e é sempre tão fácil perdermos o fio condutor, esquecer a felicidade nos intervalos da tragédia, que também se faz ouvir no decorrer de uma vida.
Por vezes, instala-se uma música escura e parece que tudo se silencia, que uma morte precoce desce sobre as nossas mãos como um fim de um compasso, aquele ponto final onde a curva parece esconder o resto do caminho.
Nesses momentos, talvez o melhor seja encostar o ouvido rente à terra, que é outra forma de encostar o ouvido rente ao coração e perceber que a música ainda não se esgotou. Que basta continuar a dança mesmo quando se perde o ritmo e o ouvido. Há, no fundo do coração, uma melodia infinita à espera que o ouvido a encontre e que, juntos, possam continuar a coreografia da possibilidade de uma felicidade intermitente, mas sempre presente em todas as ausências que se impõem.
Aprender a viver é aprender, de cor, a música de existir. Não é fácil, mas é possível. E nesse sonho da possibilidade está a mais verdadeira matéria humana e a sua única capacidade de voltar a ser feliz.
Raquel Gonçalves escreve
à segunda-feira, de 4 em 4 semanas