Tantas foram as vezes que procurou o ombro amigo de tantas garrafas sem nome. Ao longo dos anos, ao longo do sofrimento que viveu, teve períodos de estar apagado pela bebida, outros de ser agressivo. E mesmo assim trabalhou até não poder e ficar com lesões permanentes. Quando já não podia trabalhar, lá procurou o ombro amigo, que o ajudava a esquecer a vida, o sofrimento que tinha sentido e o sofrimento que tinha causado.
Uma das frases que é dita com facilidade é que na vida não há borlas, nem nada é de graça. E o ombro amigo da bebida, do álcool, também não é de borla. Pode dar muitos sorrisos e gargalhadas, animar muitas noites, mas nenhuma delas é de graça. Na verdade, de amigo não tem nada. Um puro veneno. Engana-nos com os risos que damos. Mas é tão perverso, como a bruxa má, da casa de doces do conto de Hansel e Gretel. Inicialmente é prazer e alegria, ajuda-nos a digerir a refeição e a soltar o nosso coração. Mas depois vem o vazio, com mais calorias que o pão que nos alimenta, é mais vazio, que o vazio do esquecimento. Não tem nada nutritivo, mas enche-nos e deixa-nos sem apetite. É um veneno que destrói todos os nossos órgãos. Aumenta o risco de cancro, de demência, de enfartes. Um copo por dia não traz saúde. É melhor do que beber uma garrafa, mas não tem vantagens que justifique dizer a alguém que não bebe para beber. É a desculpa que queremos ouvir.
E de braços dados a este veneno, lá foi a personagem pessoa desta história, caminhando a maior parte do tempo alcoolizado. Tantos internamentos pelo caminho. Com ar de sem-abrigo, trazido pela mão da sua mãe já sem esperança, veio em novo pedido de ajuda. Já tinha tido pelo menos 28 internamentos. Tinha saído de um, ainda nem um mês tinha passado, quando o vi pela primeira vez, ainda alcoolizado. Sem vontade de recuperação. Foi no meio da intoxicação e insistência da sua mãe, que aceitou mais um internamento. E nesses dias, sem saber explicar, algo mudou nele. No meio de tanto sofrimento, conseguimos abordar a tristeza e a ansiedade, a culpa e a vergonha, o desespero e a pequenina chama que ainda queria viver. Não saiu um homem curado. Não saiu um homem novo. Mas saiu calmo e com esperança.
Talvez tenha passado um ano, nem sei, quando o voltei a ver. Nem queria acreditar no que estava a ver. Um homem elegante, que transmitia vida e alegria no olhar, com a dignidade de ter vencido uma guerra de cem anos. E os anos foram passando e a recuperação manteve-se. Ainda hoje me vêm as lágrimas quando penso na enorme conquista que este Homem fez. Ninguém acredita que alguém que esteve cerca de 30 vezes internado possa recuperar. Naquele primeiro dia, também eu não acreditei, mas fiz o que tento sempre fazer, dar a oportunidade de ser possível. E isso foi o que este Homem precisou, para conseguir transformar-se de sem-abrigo a engravatado. Não veio com gravata, mas veio muito elegante. Agradeço sempre ter sido possível a sua recuperação, que dependeu sobretudo dele.
E tanto ele, como eu, a única coisa que queremos é que possam existir mais histórias de recuperação, que se deixe de procurar o álcool e as drogas como solução. Que um dia deixe de ser cultura e educação beber quando os outros bebem, para ser normal brindar com água.