Os relatos de maus-tratos, de negligências e mesmo de abandonos, não são uma realidade apenas da nossa contemporaneidade, são encontrados na mitologia ocidental, em rituais de iniciação ou de passagem para a idade adulta, fazendo parte da história cultural da humanidade. Ao longo da nossa História, a violência intrafamiliar foi uma prática instituída, sem qualquer penalização criminal. A título de exemplo, segundo a Lei das Doze Tábuas (séc. V a.C.), a Lex Duodecim Tabularum: o pater familias tinha vitae necisque potestas, isto é, o pai tinha poderes de vida ou de morte sobre seus filhos.
Em agosto assinala-se quase uma década desde que entrou em vigor, em Portugal, a Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica. Recorde-se que a Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica foi adotada em Istambul, a 11 de maio de 2011, tendo sido aprovada pelo governo português a 16 de novembro de 2012 e ratificada pela Assembleia da República a 21 de janeiro de 2013. Entrou em vigor em Portugal a 1 de agosto de 2014. São 8 anos, para sermos mais precisos. Esta Convenção, um instrumento jurídico vinculativo, de âmbito internacional, mais conhecida por Convenção de Istambul, reconhece a existência da categoria de género socialmente construída que, segundo os seus signatários, compele mulheres e homens em posicionamentos sociais, com comportamentos específicos ou expectáveis associados, os quais de alguma forma geram estereótipos e preconceitos que podem vir, malgrado de forma primária, legitimar socialmente a violência contra as mulheres, raparigas e meninas.
Ao nível da Educação, torna-se necessário reforçar o desenvolvimento de ações sobre temas como, por exemplo: a igualdade entre mulheres e homens, os papéis não estereotipados dos géneros, o respeito mútuo, a resolução não violenta dos conflitos nas relações interpessoais, entre outros. A violência intrafamiliar é uma experiência que deixa traumas, que costuma ter uma série de repercussões, pois nessas situações, não é apenas a pessoa agredida que sofre, mas todos os membros da família que convivem, direta ou indiretamente, com a violência.
Tendo por base a Convenção de Istambul, a qual incita o Estado Português a desenhar e a colocar em prática a adoção de políticas públicas, que conduzam à erradicação da violência contra as mulheres e violência doméstica. Para tal, deve o nosso país trabalhar em medidas específicas, que contemplem várias dimensões. A começar pela área da prevenção. Prevenir, implica uma mudança de atitudes, de comportamento, de busca e de procura de uma verdadeira Igualdade de Género, onde a cada pessoa, independentemente de ser homem ou mulher, será dada opção de escolha. Enquanto instrumento jurídico vinculativo, a Convenção de Istambul exige também, por um lado, a aplicação de medidas de proteção e apoio, com foco nas vítimas; por outro, na criminalização e consequente punição pelos crimes, com centralidade no autor de violência.
Acresce ainda outros factos, sobre os quais importa refletir. Os estudos abundam, em números e em casos concretos. Nunca tivemos tanta informação disponível. Falamos de estatísticas e, de novo, voltamos aos números. São importantes, sem dúvida alguma, mas não tanto quanto as pessoas que estão por detrás deles: as vítimas. Em carne e osso. Feridas, por fora e por dentro. A tudo isto, acrescem as desigualdades económicas, sociais e culturais, potenciadas pela pandemia da COVID 19, assim bem como o consumo de drogas e o desemprego, podem ser considerados fatores que têm vindo a contribuir para o aumento generalizado da violência doméstica e/ou intrafamiliar.
As consequências sofridas pela convivência em contextos familiares violentos podem ser diversas e têm vindo a apresentar-se de diferentes formas. Vão mais além do isolamento social. Dito de outra forma, e por que não será nunca demais repetir, enquanto a realidade for esta, a violência contra as mulheres e violência doméstica é uma grave violação dos direitos humanos e uma forma de discriminação com impacto não apenas nas vítimas, mas também na sociedade. No seu todo. É urgente reconhecer que a realização de jure e de facto da igualdade entre as mulheres e os homens é um elemento chave na prevenção da violência contra as mulheres.