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Artigo de Opinião

Professora Universitária

29/05/2023 07:30

Numa galáxia de afastamento entre saber e política, com a solidez cultural fornecida como pílulas, pequenos adornos inofensivos, sem levar a competências interiorizadas de diálogo entre espaços e tempos, a função política de educação à consciência da complexidade do mundo tem-se vindo a esvaziar. A problematização do pensamento deu lugar à banalização e afeta todas as áreas fulcrais da nossa sociedade com efeitos devastadores.

Parecerá estranho agora ao leitor que ligue um discurso do presidente da CIP a um programa como o Preço Certo. O que é que o Dr. Armindo Monteiro poderá ter dito que seja comparável a um programa de televisão cujos seguidores são muito diferentes do público-alvo do gestor? O presidente da CIP lembrou-nos que Portugal é um país pobre (só assim se entende a alegria avassaladora de vencer um eletrodoméstico num programa de televisão), muito pobre, que não deve esbanjar dinheiro no assistencialismo (ai, e as minhas Casas do Povo?), que a agenda do trabalho digno é ridícula e que somos um país de desistentes. Diria que estamos face a um exemplo sobre o qual Fernando Pessoa escreveu em O Caso Mental Português. Pior, sem conhecimentos humanísticos, meteu Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão no grupo Vencidos da Vida, como exemplo de que só falavam dentro de portas e eram uns desistentes. Mas, afinal, porque é que deixam à solta os intelectuais? Então, se Eça tivesse sido gestor ou funcionário (única constelação admitida no mundo utilitarista), não teria sido melhor?

Eça de Queiroz está na base de uma das reformas mais importantes assinadas por Andrade Corvo e ainda hoje, no campo da emigração e da proteção dos trabalhadores, é visto como uma personalidade fulcral pelo trabalho junto aos emigrantes asiáticos que passavam por Macau e se dirigiam a Cuba e aos Estados Unidos, onde encontravam uma verdadeira escravatura junto com muitos emigrantes portugueses. Escreveu um relatório, quando cônsul em Havana, que devia ser lido por todos sobre a força das migrações. Quando se deslocou aos Estados Unidos para aferir das deploráveis condições de trabalho dos portugueses emigrados na América, compreendeu bem que estava a nascer uma outra potência imperialista, concorrente da Europa, tendo descrito a exploração do trabalhador quando essa potência é governada por interesses exclusivamente empresariais e não humanistas. Não foi um Vencido da Vida. Nem um alienado da conjuntura política. E se o presidente da CIP não sabe isso, morre o mundo? Não. Mas o desconhecimento cultural alimenta a falência da política.

Uma política que hoje é feita cada vez menos nos congressos, nas ruas, e que cedeu à tendência televisiva do entretenimento, à fotografia icónica, à construção da celebridade, que ocupa a cena mediática e constrói expoentes políticos. O partido que representava, com a sua história e a sua ideologia, deu lugar ao líder do talk show e do programa dos que ficam felizes por ganhar um bem rapidamente consumido, um nada de coisa nenhuma, esquecendo pressupostos ideológicos ou político-culturais. Sozinho, diante da câmara que o enquadra, ele é uma figura, um corpo, um rosto que entra nas casas de milhões de telespectadores, procurando os indiferentes e os incertos, "vende o produto", de acordo com as regras da publicidade. Que ferramenta mais adequada do que o entretenimento e o palco de marketing? De Ventura aos outros parecidos, de um quadrante ou de outro, estão aí.

A crise da cultura alimenta a crise da política, porque fragmenta conhecimentos e responsabilidades, pronta a inserir-nos a todos numa máquina bem oleada dos mecanismos de um sistema que não podem ser parados sem consciência de que o conhecimento tem de ser cultivado e que a complexidade deve ser o antídoto para o engano das simplificações. É por isso que Eça nos deixou as Farpas.

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