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Artigo de Opinião

4/12/2021 08:01

Os homens armados, simpáticos e carregados de bonomia, explicam que estão ali para o bem de todos os moradores, que querem protegê-los de ameaças exteriores, mas também de ameaças interiores, como acidentes em potencial ou más consequências para qualquer desavença que rebente entre os moradores. Para isso apenas pretendem um pagamento mensal e ter cópias de todas as chaves do prédio. Querem ter a certeza de que é tudo seguro, de que não há nenhum potencial problema em cada lar e que não há forma de alguém provocar danos de maior ao vizinho — ou a si próprio. Todos devem anuir para que o trato seja efectivo. A partir daqui parece haver um consenso, entre os moradores, de que estes senhores não constituem ameaça, antes pelo contrário, estão ali para lhes melhorar a vida.

No entanto, há um morador que não aceita. Ele não quer dar dinheiro por um serviço que não pediu — e que até pode achar que não necessita. Ele não quer dar acesso à sua privacidade a desconhecidos armados, apenas pelo facto de estes estarem armados — por melhores sejam as suas intenções.

Aqui os homens armados colocam as mãos nas armas e, mantendo a bonomia, avisam que caso alguém se recuse, vão invadir todas as casas à força, fazer a benemérita inspecção mesmo assim e levar valores para pagar os seus serviços. O obstinado morador continua a recusar-se a aceitar a bondade dos estranhos, desta vez convicto, até pela ameaça feita, de que aquela bondade é muito pouco altruísta.

Perante esta recusa, os homens armados engatilham as armas e dividem-se. Um grupo fica no átrio, de olho severo nos moradores, o outro sobe escadas acima. O som de uma porta a ser arrombada ecoa até o átrio, onde os moradores se viram, carregados de raiva, contra o seu vizinho teimoso. Afinal, ele privara-os a todos de uma boa relação com aqueles beneméritos rufias, e ainda lhes ia custar portas novas e sabe-se mais lá o quê.

Aqui, acredito, o leitor divide-se. Por um lado, tal como os moradores do prédio, culpa o vizinho teimoso pela violência. Estaria tudo pacífico se ele se tivesse conformado e cedesse parte do seu rendimento, assim como da sua privacidade. Por outro lado, quem praticou violência não foi o obstinado vizinho. Quem fez a ameaça tácita, logo de início e ao longo da conversa, não foi o vizinho cioso da sua privacidade.

Até a melhor das intenções perde o seu valor benemérito a partir do momento em que é imposta. A melhor e mais consensual das ideias perde a sua bondade — e até a certeza quanto à sua bondade — quando é posta em prática contra a vontade de quem delas supostamente beneficiaria.

Não são poucas as vezes que apontamos o dedo acusador a quem, efectivamente, não tem responsabilidade pelo mal de que nos queixamos. Eu, culpado me confesso.

Nestes tempos loucos e pouco lógicos, com uma pandemia à perna, quem nos limita a liberdade não são os não-vacinados. Também não são os que não querem usar máscara, nem os que vão abanar o capacete na discoteca ou os que frequentam congressos de pneumologia. Nenhum destes tem a arma na mão. Nenhum deles faz ou impõe leis.

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