Escrevo este artigo já ciente de que o PSD de Miguel Albuquerque venceu as legislativas regionais da nossa Região Autónoma, melhorando o resultado, falhando a maioria absoluta por pouco. Isto apesar de ser arguido e classificado como criminoso pelas oposições. Isaltino Morais, por exemplo, condenado por fraude fiscal e branqueamento de capitais, foi novamente eleito presidente da Câmara Municipal de Oeiras depois de cumprida a pena. Há algum mal nisso? Um não é culpado e o outro cumpriu a pena. Se votam neles, é a democracia.
A procura constante do imaculado, do ser superior a quem nada toca, só traz desilusão. Até o mais branco dos panos tem defeito. Se quisermos exigir ao outro a perfeição, temos de a procurar em nós primeiro, em vez de ignorar sistematicamente regras de trânsito, facturas ou presentes enluvados. Do ponto de vista formal, se tivermos em conta toda a legislação expelida pelos nossos corpos legislativos, é uma improbabilidade estatística que haja um só cidadão português maior de 20 anos que nunca tenha quebrado uma lei sequer. Mas os dirigentes políticos têm de ter uma vida pública sem mácula. Ou mesmo privada, se considerarmos a fuçada que hoje se faz à vida do actual primeiro-ministro de Portugal.
Luís Montenegro, esse infame rural a quem só ainda não exigiram saber se põe gelo na poncha ou ananás na pizza, escolheu as vias legais que mais o beneficiavam, como qualquer outro português; como qualquer outro ser humano. Mas como é primeiro-ministro, exige-se tudo. Não é mais; é tudo. Tem de ser imaculado. O problema é que de agora em diante não há santo que possa aceder a cargos políticos de topo que não deva passar pelo mesmo escrutínio, ou seja, pelo chumbo moralista de quem não o aprecia ou dele beneficia. Ninguém pode ser herdeiro de uma empresa, ter feito consultadoria a empresas privadas, ou ter comprado propriedade em locais onde sabe que o próprio vai decidir pespegar um aeroporto, por exemplo, sob pena de ser desnudado na praça pública.
A História recente parece dizer-nos que, com tanta exigência de imaculada santidade, tanta super-humanização do detentor do cargo público, o votante ganha imunidade a esse apelo e acaba a votar em degenerados comprovados. Durante anos, nos Estados Unidos, as campanhas eleitorais têm sido de devassa da vida privada dos candidatos, de lhes apanhar cada pecadilho. Na última eleição o votante ignorou todos os embaraços (perdoem-me o eufemismo) que o actual ocupante da Casa Branca arrasta consigo.
O Homem Providencial (que pode ser uma mulher, sim) é uma ilusão. O imaculado é uma impossibilidade estatística (até São Pedro negou Cristo três vezes para safar a pele). Um indivíduo vivido e experimentado é sempre preferível para aqueles cargos, em vez do indivíduo que tem a ficha limpa porque nunca fez nada, nunca arriscou nada, nunca se expôs à vida.
Mas já que é para apontar o dedo, ao menos aponte-se o dedo apenas depois do exercício do espelho. Não pode andar em excesso de velocidade? Eu também não. Não pode evitar impostos, mesmo que legalmente? Então eu também não.
Houve, no século XX, um dirigente vegetariano, abstémio e anti-tabaco, que subiu ao poder para limpar a moral da sua nação, e acabou por fazer mergulhar meio mundo numa guerra sanguinária, enquanto limpava as nações que conquistou dos genes e culturas por ele indesejadas.
Se temos mesmo que ter quem nos governe, procuremos indivíduos competentes para o fazer, mesmo que imperfeitos. De preferência pouco providenciais