O mais recente quadro de regulação desta matéria consta na Lei nº 50/2018, que veio alterar, ampliando, muito do regime constante da Lei nº 75/2013. Apontou-se para uma matriz regulatória abrangente no que diz respeito à transferência de novas competências, identificação da respetiva natureza e a possível forma de afetação dos recursos (dependentes do "sucesso" das áreas descentralizadas). Estas medidas serão concretizadas através de diplomas legais específicos, relativos aos setores a descentralizar, os quais estabelecerão também disposições transitórias adequadas à gestão do próprio procedimento de transferência. O horizonte temporal fixado foi no sentido em que as competências a descentralizar seriam transferidas até 1 de janeiro de 2021, por forma a acompanhar o atual ciclo autárquico. O atual cenário pandémico acabou por inevitavelmente comprometer tudo isto.
Portugal, a confirmarem-se os indicadores, poderá vir a ter um volume financeiro inédito desde a adesão à União Europeia. Concretamente, o PRR e o Programa Portugal 2030 irão trazer ao nosso país qualquer coisa como 40 mil milhões de euros. Particularmente, já foi anunciado que uma parte significativa será executado por Programas Operacionais Regionais.
Acontece, no entanto, que num momento em que se discutem as próximas alocações de valores, a matéria da descentralização, naquilo que é a sua conveniente amplitude e aprofundamento, ainda se discute. Assim sendo, muito do alcance da descentralização, do denominado Poder Central para os Municípios, acabará por vir a ter, muito certamente, uma aplicação simultânea entre o "envelope financeiro" e o "pacote" de matérias a descentralizar.
Seguindo os dados disponíveis, anunciados pelo Governo, estarão previstos transferir para os 308 Municípios cerca de 890 milhões de euros. Montante global, que terá na educação, na saúde e na habitação os setores prioritários.
Restará, pois, saber se os Municípios se conformarão às verbas que lhes forem disponibilizadas no desconhecimento das matérias que ainda lhes podem vir a ser transferidas?
É um dado insofismável que o principal princípio, que preside à descentralização, é o da proximidade das entidades às populações que representam. Quiçá, estaremos aqui, perante a afirmação mais prática do princípio da subsidiariedade. Princípio que, como é ademais consabido, acaba radicado na ideia de uma autolimitação de poderes de uma entidade superior a qual só deve "chamar para si" aquelas funções que não possam, ou não devam, de forma eficaz e adequada, ser prosseguidas pelas instâncias inferiores. Estamos claramente perante uma aproximação dos cidadãos ao poder político, na mais correta distribuição vertical de atribuições competenciais. Na essência, um desígnio democrático de limitação de poderes. No caso, a CRP, no artigo 235º, nº2, acaba por induzir (aflorando este princípio dogmático), assegurando-se o mais possível uma aproximação do poder decisório aos cidadãos.
Não deixa de ser relevante que o principal desígnio, que preside à descentralização, é o facto de os Municípios estarem mais bem capacitados para responder aos anseios das populações que representam. Na realidade, estão próximos dos cidadãos e compreendem melhor as suas necessidades, assim como dos territórios que gerem.
Quando se aborda esta matéria da descentralização tal acaba por inevitavelmente nos remeter para tudo aquilo que concerne a uma confrontação, já clássica, entre o modelo histórico dominante da centralização ou a opção por uma territorialização de base municipal, sempre adiada apesar de amiudadamente anunciada.
Em rigor, num tempo em que se discutem mais competências para as autarquias, se reivindicam aprofundamentos nas matérias descentralizadas e se coloca por vezes a tónica numa discussão ideológica eminentemente política/partidária e financeira, se não esqueça a dimensão jurídica e o quadro regulatório que a CRP estabelece para estes fins. Mas, sobretudo, se não perca o sentido estratégico na definição das políticas públicas. Estamos, de longe, desde a implementação daquilo que foi denominado como "poder local democrático" -saído do 25 de abril de 1974, perante o maior "pacote" de descentralização de competências, ao que se aliará o maior volume de verbas a atribuir; pelo que perder esta oportunidade, por ineptidão ou falta de coragem política, seguramente não será compreendido, nem perdoado, pelas próximas gerações.
Eduardo Alves escreve
à segunda-feira, de 4 em 4 semanas