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Artigo de Opinião

ÀS VEZES VOO. ÀS VEZES CAIO

Jornalista

4/10/2024 08:00

Uma mão pode viver da sombra de outra mão, pode ser um corpo deitado sobre outro corpo. Houve um tempo em que julguei que éramos bons até que algo nos corrompesse; uma ínfima fibra solta do desamparo de uma mão, uma fé cortada por um dedo, um silêncio então aflorado onde se não esperava. Não sei de que natureza somos ou de quantas sombras nos atormentamos até nos sabermos maus, até nos perdermos do fundo dos olhos de uma ilha.

Houve um tempo em que acreditei que nos bastávamos sobre um corpo ou sobre a sua sombra; que uma mão podia cair sobre a nossa cabeça sem se ouvir. Mas agora o estrondo é a boca de uma planta desconhecida e o sono é terrível nestes lugares de lentíssima morte. E é cada vez mais difícil, impossível, encontrar as palavras para este corpo de crostas em que nos tornámos, onde toda a ardência é só maligna; e é uma dor onde nem estamos já. Se ao menos o mar entrasse, ainda que como mera e transitória invenção de mãe aflita. Mas as mães estão mortas para este tipo de salvação, não existem mais as suas mãos húmidas e seguras como as árvores nem os seus rostos inclinados sobre todas as dúvidas que pensávamos não ser. Está agora extinto todo o fogo da inocência e as mães são uma neve de detritos que vamos repetindo até ao cimo de um e de outro fim. Terá havido beleza.

Houve um tempo em que o nosso corpo sondava os músculos e a tempestade inteira de outro corpo, houve um tempo de febre e de atenção, uma presciência que não era, ainda, a de Deus, mas a luz de duas mãos contra a devastação de um corpo. Houve esse tempo em que éramos mais corpo do que administração e em que podíamos descer sem a mácula da fraqueza ou o “horror da inteligência”.

Houve um tempo em que podíamos voltar para casa e o silêncio não seria o vazio, a consumação e morte de todas as palavras. Haverá beleza? A água estará, ainda, no fundo da terra? A voz da mãe inundará o chão profundo da casa?

É a inutilidade de tudo que deve atormentar-nos, as mãos que se deixam acometer de frios irremovíveis até que a última das sombras lhes seja negada. É sobretudo dentro do horror que um corpo tem de bastar-se sobre outro corpo, sem qualquer desejo de fuga ou desapego, com a cabeça sempre voltada para o mar, auscultando o tremor da terra e entrando na água dentro das mãos, como quem se prepara para um salvamento sem absolvição.

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