Sou, tal como quase todos nós, culturalmente, católica e criada desde menina dentro dos preceitos dessa forma de expressão religiosa. Apesar de a crença se ter dissolvido com o passar dos anos, encontro um apelo especial numa igreja nas horas em que não há qualquer função. A penumbra do interior, trespassada pelo colorido caleidoscópico da luz através dos vitrais, e o silêncio que se eleva na amplitude das naves vazias são, para mim, algo apaziguador. Gosto de me demorar a refletir sobre a vida, sobre o mundo; luto para entender os percursos do Homem dos quais permite que Deus se ausente lhe deixe a liberdade de se autodestruir. A verdade é que, mesmo não acreditando que haja o tal Deus todo-poderoso, gosto desta paz que se sente no interior da que dizemos ser a Sua casa. Talvez porque dentro dela se se encontre algum refrigério para as dores e vislumbres de esperança.
Empurrei a porta que rolou macia nas dobradiças e se fechou sem ruído. Avancei e sentei-me no extremo do banco mais próximo, não fossem os meus passos interromper o silêncio. Olhei o interior da igreja: o púlpito vazio, as pinturas do teto e das paredes, o altar-mor obscurecido e os bancos polidos que se estendem quase até ele. Uma igreja é um sítio controverso: por um lado, apela à figura de Cristo — o filho abandonado pelo tal Pai todo-poderoso —, alardeia, como exemplo a seguir, a sua vida de sofrimento e humildade; por outro, exibe o gosto pela ostentação nos painéis, nas talhas douradas, com excessos de cornucópias e rococós ou nos imponentes cadeirões de veludo escarlate, para assento dos eclesiásticos. Duas faces da mesma história, qual delas a mais apelativa para o povo, qual delas a que melhor suporta e alimenta a devoção?
Assim cogitava eu, quando aos meus pensamentos, começaram a chegar interferências de uma voz feminina. Presumi que seria algum diálogo na sacristia entre zeladoras da igreja, o único papel a que as mulheres podem almejar na casa de Deus. As religiões politeístas ao menos eram um pouco mais igualitárias: tinham deuses e deusas, uns bons, outros maus, cada um com os seus poderes, enfim, havia-os para todas as funções e para dar resposta às diversas inquietações humanas. Enquanto assim argumentava comigo própria, a voz sussurrada persistia.
Olhei mais atentamente e reparei que, afinal, não estava só, como cria. No banco mais dianteiro, mesmo junto ao degrau de acesso ao altar-mor, estava sentada uma mulher. Uma figura pequenina de cabelo curto, grisalho, inclinada para a frente, quase dobrada sobre si. Falava num murmúrio persistente, incontido. Pela entoação, não parecia orar. Era uma conversa, e só podia ser com Deus. Se o acusava, se lhe pedia ajuda, se lhe confidenciava as mágoas ou pecados, só ela e Ele o saberiam.
A minha presença não fora notada, ou, se fora, não a incomodava. Permaneci alguns segundos sem ousar mexer um músculo, dominada por um pudor emotivo que sempre me invade perante uma manifestação de fé. Senti-me intrusa e, apesar de não conseguir discernir o sentido daquele monólogo ou talvez diálogo com Deus, achei que devia deixá-los a sós.
Levantei-me e, tão discreta como entrara, saí e retomei a minha caminhada, falando em surdina com os meus botões. Ou seria com Deus?