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Artigo de Opinião

DE LETRA E CAL

12/07/2021 07:00

Com as palavras inventamos tudo o que não nasce na terra e nas árvores. Cito de cor Patrícia Portela e, neste movimento de citar, deixo embalar o quanto esta frase me tocou. Tantas coisas ganham uma existência visível por meio das palavras. Uma existência verdadeira.

Também nós somos, ou sobretudo somos, aquilo que as palavras conseguem inventar. Sabemos bem o quanto da memória é construído por um processo do que se recorda e do que, nesse recordar, se inventa, porque inventar é essencialmente um trabalho do coração, desse centro do corpo de onde brotam as coisas verdadeiras da imaginação.

Surge dessa invenção a mais terna memória da cara do meu pai, o som do assobio que nos chamava, a caixa de bolos com o creme misturado pelas curvas do autocarro. A cara do meu pai real é criada pelo que não nasceu nele, mas que nasceu em nós com ele.

As cores precisas e inventadas da minha infância. O sofá mais verde dentro da minha cabeça do que o verde com que o tingiram. O cimento de onde nasciam todos os arranhões nos joelhos caídos de cima da bicicleta quando lhe tiraram as rodas de apoio. A primeira queda do coração sem rodas de lado para o amparar. Viriam outras e o corpo habitua-se à vertigem.

As cores das ruas passadas e a forma como a sol se inclinava por elas, ou a cor do verão e do mar que vencíamos de nariz a arder as sardas. Os calções azuis que na memória são tal e qual aquele céu onde terminava o mundo na linha concreta do horizonte.

O lugar que se fez casa e a chuva torrencial onde tu inventaste uma barca com um cão como marinheiro. "A barca está vindo", dizias tu na espera e inventávamos um futuro que na verdade não existia, mas pela imaginação e pelas palavras foi o futuro mais real e mais certo de todos.

Também nós não nascemos na terra e nas árvores. Nascemos das palavras. Tu, mais do que todos, sabias que nada era mais concreto do que essa ficção de dizer o que não existe, ou de dizer o que inventámos para sobreviver.

Não havia mesmo sobrevivência possível fora daquela que inventámos contra as evidências, o saber, as verdades dos outros. Mas ficção sempre foi nossa. Inventávamos pelas palavras o passado que não tivemos, o futuro que não teríamos e todo o tempo intermédio por vir.

Inventámos a verdade, e a verdade é como o faz de conta da infância e o seu poder contra os monstros e a morte. Só na infância ninguém morre. E a infância é um lugar de palavras que criam as árvores e a terra de onde nascem as coisas mais verdadeiras.

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